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quinta-feira, março 06, 2025

Sombras no Quintal


 O Peso


Morro da Lagoa da Conceição – Agosto de 2003


— Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!

A frase caiu como um trovão. Jesus ficou em choque, sentindo as bases de sua vida desmoronarem.

Lembrou-se, como se fosse ontem, de uma noite na década de 70. Voltava para casa bêbado, como de costume, no último ônibus da linha Vila Cecília/Viamão. Mas aquela noite era diferente. Não brincava, falava ou ria como geralmente fazia. Estava calado, absorto em pensamentos.

O ônibus não estava cheio, mas quase todas as poltronas estavam ocupadas. Ele se sentou logo após a catraca. De repente, risadas e gritos vieram do fundo do veículo. Um grupo de jovens o chamava de “corno”, debochando sem pudor. Ele fingiu que não era com ele, fechou os olhos e tentou parecer que dormia.

Quando desceu no ponto, ouviu novamente:

Corno!

Mais risadas.

O sangue ferveu, mas ele pensou: Capaz que sou corno! Minha mulher, a Heliana, é super caprichosa, cuida tão bem das nossas duas filhas, da casa. Nunca sai de casa. Isso nunca poderia acontecer. E o meu pai... Passa o dia lá, plantando no quintal... Só não lembro exatamente o que ele planta.

Os dias passaram, mas as provocações martelavam sua cabeça. Incapaz de ignorá-las, Jesus contou a Heliana o que aconteceu no ônibus. Assim que terminou, ela empalideceu e disse, quase em pânico:

Nós vamos embora daqui!

Heliana entrou em contato com o tio Tobias, que tinha um caminhão de mudanças. Em poucos dias, a família se mudou para a casa dos pais dela.

O novo lar era precário. Uma das paredes estava inacabada, aberta para o céu. O pai de Heliana, Seu Noé, improvisou um quarto para eles, fechando parte de sua oficina de ferreiro. Passava os dias entre a marreta, ferros em braza a bigorna e a cachaça.

Heliana odiava o pai profundamente. Quando ele bebia e brigava com a mãe, ela o enfrentava com unhas — e até cuspidas. Era uma relação marcada pelo rancor e pelo ódio ao pai alcoólatra, a mesma enfermidade que acometia Jesus.

Certo dia, ele ouviu Heliana conversando com a mãe:

Estou grávida de novo.

A mãe, resignada, respondeu:

Onde comem dois, comem três.

Jesus ficou inquieto. Grávida? Como? Ela sempre exige camisinha. Só se rompeu...

Meses depois, Victor nasceu. Quando o menino já estava maior, a família foi à pracinha em frente à igreja Nossa Senhora do Trabalho. Enquanto Victor brincava no balanço, Heliana comentou:

Já notou que filhos de pais bem mais velhos que as mães são muito mais bonitos?

Jesus ficou desconcertado. Ela acha que nosso filho não é bonito?

Além disso, Heliana repetia como um mantra:

— Só as mães sabem de quem são os filhos. Os pais nunca têm certeza.

O comentário reverberava em sua mente, mas ele engolia tudo em silêncio. Muitos anos se passaram.

Então, seis anos após a separação, veio a ligação.

Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!

O chão sumiu. Em segundos, sua mente revisitava todas as noites voltando bêbado, as manhãs evitando cruzar com o pai no quintal. Como uma sombra, ele sempre estava lá, capinando. Havia acabado de se aposentar da Marinha. Tinha cinquenta e poucos anos, nunca bebeu, nunca fumou, era bem jovem para a idade que tinha.

Agora fazia sentido. As risadas no ônibus. Os comentários de Heliana. Tudo.

O filho que ele tanto amava — o único homem entre as três meninas — não era seu. Era de seu pai.

Num instante, Jesus perdeu um filho e um pai. Pensou em matar o velho que tanto admirava, o pai que o inspirara com histórias de marinheiro e aventuras pelo mundo. Jesus também sonhara em ser marinheiro, mas Heliana engravidara antes que ele pudesse realizar esse sonho. Agora, tudo estava destruído.

Desesperado e chorando, vagou pelo centro de Florianópolis, pensando em tirar a própria vida ou acabar com a de Heliana e de seu pai. Foi quando, por acaso, entrou em uma farmácia homeopática. A farmacêutica, percebendo seu estado, pegou suas mãos e perguntou:

O que está acontecendo?

Chorando, Jesus desabafou todo o sofrimento. A mulher ouviu em silêncio. Quando ele terminou, ela disse:

Meu filho, esse peso não é teu. Solta ele agora. Esse peso é deles, do teu pai e da tua ex-mulher.

As palavras foram como um milagre. Jesus sentiu um alívio inesperado. Era verdade: aquele peso não era dele...


3 comentários:

Anônimo disse...

Meu Deus, que história inacreditável! Imagino o peso que Jesus carregou por tanto tempo, as dúvidas, as dores não ditas… E então, essa verdade brutal, jogada como uma bomba. Mas sabe o que mais me impressiona? A força. Jesus não deixou essa tragédia destruí-lo. Encontrou sabedoria onde muitos só veriam desespero. Te admiro demais por isso!

Vera Lucia Vasconcelos

Anônimo disse...

Fico pensando nas duas meninas que viviam na mesma casa. Será que elas percebiam que algo errado acontecia com a mãe?

Márcio Menna Barreto

Anônimo disse...

Outra coisa me passa pela cabeça como leitora: a Heliana não pode ter sido estuprada pelo sogro? Por que ela iria querer se relacionar com um velho? Heliana tem ódio do próprio pai, que também é alcoólatra como Jesus, e deve ter sofrido muito na mão desses três homens (o sogro, o pai e Jesus).