domingo, junho 04, 2006

Jesus me disse...>

Parte I

Martírio

Jesus trabalhava no Mercado Público, ajudando descarregar os caminhões de peixes que começavam chegar depois das 04h30 da manhã. Ele tinha no máximo 1,60m de altura, não pesava mais de 60 kg, tinha a pele morena, usava óculos de professor com cordinha no pescoço, era quieto e tranqüilo, cabelos encaracolados curtos, mas com costeletas até a metade do rosto, e usava um bigode bem fininho. Os caminhoneiros que descarregavam peixes, quando tentavam pegar no seu pé, ele só respondia timidamente “tais tolo, tais...” e seguia empurrando o carrinho cheio de peixes, camarões, siris, lulas e mariscos conservados no gelo para os boxes. Este trabalho se estendia até as 08h00, quando ele parava para o sagrado cafezinho. Chegava ao bar do mercado e o garçom já sabia, - O de sempre Jesus? Botava uma mistura de bitter com cachaça até a metade de um copo de refrigerante para não derrubar. Este já era seu segundo. O primeiro ele já havia tomado antes de sair de casa para aliviar a tremedeira. Depois comia um pão com mortadela e queijo, com uma xícara de café preto. Aí, ajudava limpando peixes nos Boxes, trabalho que durava até as 16h00.
Antes de anoitecer, quando chegava ao morro, ele ainda passava por mais três bares. Anoitecia, chegava em casa lá pelas 19h00, sempre bêbado e feliz, levando com ele um belo filé de peixe ou as melhores iguarias do mar para sua mulher e dois filhos, uma menina com 18 anos e um guri com 16. Depois de começar a subida do morro quando termina a rua, ele tinha que subir uns 500 metros de escadaria. Era na metade da mesma onde ele tomava a “saideira”, no boteco do Português. Boteco fedorento, aonde só tinha cachaça, cerveja, velas, caixa de fósforos, lingüiça e um vidro grande de conserva de ovos, que dizem, o Português só lavava a mão quando pegava um ovo para o freguês, depois saia secando a mão num pano de pratos imundo. Tinha ainda uma mesa de lata da Brahma com três cadeiras, alguns copos e garrafas de cerveja.
Quando Jesus chegou, viu que a barra estava pesada. Lá estava o chefe do morro, o Marreta com seu cachorro Saddam, um rotweiller de quase 50 kg, acompanhados por mais dois “irmão” da pesada, o Zé Boca Murcha e o Santamaría – e, pelo jeito da conversa ao pé de orelha, eles estavam fechando algum negocio. Marreta era mau, um sarará grande e forte, sinistro mesmo, cabeça raspada e um pequeno cavanhaque, ele nunca descia do morro. Ele era a própria chave de cadeia, vivia sempre muito louco, completamente “chapado”, matava por prazer. Jesus quando chegou, mesmo reconhecendo o dono da boca, não conseguia controlar sua tontura alcoólicos e acabou tropeçando numa lajota e caindo sobre a mesa do Marreta, quebrando garrafas de cerveja e o copo de cachaça. Marreta, surpreso, tomou o maior susto e os dois comparsas caíram longe já com as pistolas na mão. Até o cachorrão se assustou com a cena e começo latir para Jesus, que estava caído sobre a mesa com um pequeno sorriso de desculpas no rosto. Marreta chegou perto do Jesus agora gritando com uma pistola na mão. – Qual é, Mané? Que bosta é esta? Vou te apagar... Vou te apagar, caralho de bebum xarope!!! Foi quando o Português, reconhecendo o Jesus Bebum, suplicou: - Oh Marreta, alivia ele, este cara e gente boa, só que às vezes bebe demais. O Marreta retrucou, com um sorriso malicioso e sem misericórdia: – Não tem arrego Pra ele ser aliviado, vai ter que chupar o pau do Saddam. Quando ele falou isto o cachorro ficou excitado, como se aquela palavra já fosse conhecida, uma voz de comando.
– Vamo lá, bebum xarope, chupa o pau do Saddam! Jesus não conseguia falar, estava tudo rodopiando, ele só via a cara daquele cachorrão excitado, grunhindo de pau para fora: grande, fino, vermelho e molhado. Marreta da um chute nas costelas do Jesus que ainda estava caído, e com raiva diz mais uma vez: Chupa o pau do Saddam, caralho!!! O Português falou novamente: – Alivia ele, Marreta, ele paga o prejuízo. Marreta pareceu interessado e perguntou: – Tu tem dinheiro, bebum otário? Jesus mostrou tudo o que tinha, e, rapidamente, Marreta toma todo seu dinheiro. – É, isto aqui dá, e o resto fica como pagamento pelo prejuízo, a sacola também vai ficar comigo. Ele pega o assustado Jesus pelo colarinho, o levanta com a mão esquerda, coloca a outra nos bolsos do Jesus dando uma geral, depois de ver que Jesus não tem mais nada de valor, e enche a cara do Jesus de tapas na cara, com a mão aberta só para humilhar. Depois dá um pontapé na bunda e o manda embora ao som do riso dos outros freqüentadores do bar e do grunhido de choro do Saddam. Jesus vai, chega em casa e não fala nada para ninguém, deita na cama e se encolhe como uma criança, e chora a noite inteira de soluçar.


Domingo que vem: Jesus me disse, Parte II – A Vingança.

domingo, maio 28, 2006

Gauchão

("Viagem" sem cortes)




A gurizada não gostava muito de jogar na quadra da Praça do Alto da Bronze por dois motivos: primeiro pela limitação do campo, era pequeno demais para se jogar 20 para cada lado; segundo porque sempre tinha os guris mais velhos jogando basquete. Então nosso campo ficava na frente da praça, na parte mais plana da Fernando Machado. O problema era que se alguém chutasse mais forte na bola, descia a rua indo parar duas quadras de distância ou se alguem chutasse torto (tinha que colocar o pé na forma) ela descia a ladeira da General Portinho indo parar do outro lado da Washington Luiz, e só pra buscar a bola já perdia-se muito tempo de jogo.
O melhor campo da Rua Fernando Machado era o da frente da escadaria que saia na Duque de Caxias entre a ruas Gen. Bento Martins e a Gen. Alto. Lá tinha um prédio baixo todo revestido de pastilhas de várias cores, ele tinha um recuo da rua de uns 4 metros por 20 de comprimento, onde ficavam as traves marcadas com qualquer coisa, como tijolos, paralelepípedos, pastas do colégio, enfim, o que tivesse na mão. Mas o mais interessante da rua, é que esta parte era plana.


O time da praça e o time da escadaria sempre se enfrentavam. Podia ser 8 para cada lado como 15 para cada lado, só não podia jogar com um a mais, aí tinha que esperar para que chegasse outro guri para irem um para cada lado, e como dizia a única regra, tinham que começar no gol. Valia tudo e ainda não existia time com camisa contra os sem camisa, a gente se conhecia, e como naquele tempo pouco se trocava de roupa, era muito mais fácil. Podia se jogar de pés descalços, guides, tênis Conga, sapatos Vulcabrás ou chuteiras com as tachinhas de fora. Quem jogava de chuteira com tachinhas não podia “solar” colocando a bola em risco de furar.


Não existiam laterais e o escanteio era batido ou na Gen. Auto ou na Gen. Bento Martins. Nunca saiu “gol olímpico” já que as goleiras ficavam no meio do campo.
O único cuidado era que a bola não caísse na casa do Coronel que morava do lado direito da escadaria de quem sobe para a Duque, um gaúcho neurótico de guerra. Diziam que ele tinha combatido na Guerra dos Farrapos, vivia de sentinela na frente de sua casa tomando chimarrão sentado num banquinho. Usava bombachas, lenço no pescoço e boina azul. Assim que iniciava o jogo ele sumia e se a bola caísse no pátio dele, ele reaparecia não se sabe de onde, e antes que a bola quicasse duas vezes, ele já estava com ela não mão esquerda. Puxava das costas um facão de 7 listas e ZAZ! Cortava a bola no meio. E, com o sorriso neurótico dos vencedores, jogava a bola cortada ao meio no centro da rua. Só restava o dono da bola vestir como uma touca uma das metades da bola de borracha, enquanto o capitão do time vencedor vestia a outra metade. Ironicamente, havia acabado o jogo.
Um dia, o Otavio ganhou uma bola de couro n° 5 oficial. Era uma bola “Lusbal”, considerada a melhor entre os guris, confeccionada pelos presidiários do Partenon, super resistente, nem tachinha de chuteira velha conseguia penetrar aquele couro. Otavio tinha uns 15 anos mas com aparência de 25. Ele era totalmente cabeludo e andava sempre só de calção quadriculado tipo dos Argentinos, só que bem apertado no corpo (isto no inverno e verão). Penso que ele só colocava camisa,calças e sapatos para ir à escola ou para o centro com sua mãe. Ele tinha a as sobrancelhas grudadas, barba serrada, cabeludo nas costas e peitos, parecia um homem das cavernas, usava oculos pretos, quadrados de lentes grossas, os dois aros colados com esparadrapos, que ele tirava para jogar ficando completamente cego, chutando a bola e adversários juntos. Ele já chegou com a bola ensebada, tinha passado no açougue e vinha com um pedaço de sebo passando nela. Aquela linda bola de couro era de arrepiar qualquer um, e para quem jogava com qualquer coisa que rolasse, seria dia de clássico.
Neste dia tinha mais gente do que de costume. Imagine uma bola de couro novinha já ensebada, eram mais 20 para cada lado. Quando o jogo já estava chegando no fim, alguém chutou mais forte e ela foi parar no pátio do “velho de guerra”, que voou na bola como o Manga, goleiro do Inter, sem deixar que a bola batesse no chão. Neste pequeno instante em que agarrou a bola, o Gauchão sentiu-se o goleiro da seleção e ao mesmo tempo “viajou”, voltando ser criança outra vez, fazendo parte daquele jogo, sendo o herói dos goleiros. Aquela cena aconteceu como se fosse slow-motion, eternizando aquele misto de auto-admiração e gostinho de vitória de ver nossa cara arrasada de perdedores. Mas para não “perder-se em si mesmo”, rapidamente puxou seu facão e bateu forte na bola, mas o facão bateu no couro e voltou contra a testa do gaúcho, que agora estava sangrando. Então, num misto de humilhação e ódio, com o sangue descendo pelos olhos, nariz, no seu bigodão e queixo já molhando, bateu com o facão novamente na bola e, novamente, o facão quicou na bola voltando contra sua testa fazendo um V de uns 10 cm. Dizem que ele levou dez pontos em cada talho. O Velho Coronel ficou totalmente louco. Com a mão direita levantava o facão e com a outra, com o punho fechado, virou-se contra os times que já saiam em debandada, todos rindo felizes com a situação do Coronel louco, que a partir deste dia começou a usar uma fita vermelha amarrada na testa para esconder o V da vitória dos dois times.
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domingo, maio 21, 2006

O Flagrante


Durante uma tempestade que caía sobre a noite de Porto Alegre, acontecia uma perseguição espetacular, com “roleta Russa” no transito, acidente de carro, prisão, agressão com chave de rodas, tiros e o flagrante.


O Grêmio disputava a taça Libertadores da América no ano de 1984, e, na hora do jogo, caía há algumas horas sobre Porto Alegre a maior tempestade, e pelo jeito ainda ia longe aquela chuva de pingos grossos. Nesta noite de sexta-feira, todos os bares que tinham TV estavam ligados nesta decisão e estavam cheios, e embora chovesse muito, não estava frio. Eu claro estava assistindo e bebendo todas, cerveja com vodka e secando o Grêmio. O bar, que era do Chico, um japonês, ficava entre o Shopping Iguatemi e o Hospital Nossa Senhora da Conceição, uma paralela da Anita Garibaldi. Antes de acabar o jogo eu já estava completamente bêbado e resolvi ir embora.

Neste ano eu tinha uma Brasília branca, 82, quatro portas, com um carburador modelo exportação que comprei do jornal O GLOBO e acreditava que só a Policia Federal tinha uma outra igual. O limpador de pára-brisas não vencia a quantidade de chuva. Passei devagar em frente do hospital Nossa Senhora da Conceição e, percebendo as luzes das janelas acesas, pude verificar que não tinha movimento habitual, todos estavam assistindo ao jogo, até os doentes.

De repente, uma Kombi escolar me corta pela direita, já quase na esquina da Assis Brasil. O motorista ameaçou abrir sua porta com cara de raivoso, me assustei e fui acelerando devagar, olhando pelo retrovisor a reação inesperada, imaginando que tivesse dado uma fechada nele ou até mesmo batida na Kombi, mas resolvi não parar. O motorista da Kombi puxou a janela de correr e me ameaçava colocando o braço para fora. Acelerei e entrei na Avenida Assis Brasil com o sinal fechado e o cara entrou junto. Na minha loucura alcoólica, comecei gostar daquela perseguição, me senti como num filme. Na esquina da estrada do Forte, a sinaleira também estava vermelha, fechei os olhos e, como numa roleta russa, atravessei e ele também passou. Passamos ainda outra sinaleira e entrei à direita no Jardim Sabará, e notei agora que também me perseguia um fusca preto e branco da policia com a sirene vermelha ligada. Vi que tinha sujado e comecei procurar algum flagrante dentro do meu carro, não tinha nada, estava limpo.

Pensei em ir até o Clube Ipiranguinha onde todo mundo me conhecia, mas quando dobrei a direita e com toda aquela chuva, o carro derrapou e abraçou literalmente uma árvore. Bati o peito e a boca, estava sangrando e louco de dor quando o policial abriu minha porta deu-me uma gravata e engatilhou um revolvão na minha cabeça com a famosa frase: “Tá preso...” Eu respondi: “Me entrego, me entrego...”.

Nisto, desce da Kombi um baita alemão de 1,90 m e uns 110 kg com uma chave de roda na mão. Veio com muita raiva, eu fechei os olhos e ele bateu, acertou a cara do policial que começou a sangrar e caiu surpreso no chão, e o alemão continuou batendo com a chave de rodas, batia nos peitos, braços e pernas, nesta confusão eu fui me afastando em direção do Ipiranguinha. De repente ouvi dois tiros e o alemão caído no chão. Nisto aparece umas três viaturas da Brigada Militar travando e queimando pneus, e o policial caído apontando pra mim, e dizendo “lá vai o ladrão, lá vai o ladrão!” e eles começaram a atirar contra mim, ouvia o sibilar das balas passando pela minha cabeça e corpo, quando eu levantei os braços e disse novamente: “Me entrego, me entrego!” Os brigadianos me algemaram e me colocaram pra dentro do camburão. Meia hora depois, podia ver que estávamos no pronto socorro, ficamos algumas horas lá e de vez em quando vinha um policial, levantava a porta do camburão e dizia que eu era dele e ele iria me pendurar.

Depois fomos para a central de policia na Avenida Ipiranga e ninguém falava comigo mesmo depois deles terem me identificado. Todo mundo estava dentro da sala do delegado de plantão e eu ali sem entender o que tinha acontecido. Logo saíram uns policiais dizendo “flagrante, vai baixar o presídio”. Eu pensei “to fudido... mas o que será que eu fiz?”. Acharam alguma coisa no carro, nisto sai um cara todo machucado em minha direção, tinha perdido vários dentes, sua boca estava inchada, sem camisa todo enrolado por gazes, nas costelas, e um braço engessado na tipóia, chega pra mim e diz: “este pau era pra ti”. Foi quando me chamaram e me explicaram que eu seria testemunha do acontecido e me explicaram a situação:

O cara da Kombi também tinha uma Brasília igual a minha e achava que só ele tinha em Poa. Bêbado, também imaginou que eu tinha roubado seu carro e passou me perseguir, e como tinha rádio na Kombi, pediu socorro e disse que perseguia um ladrão. Quando bati meu carro e o Policial me deu voz de prisão, ele imaginou que o ladrão já tinha dominado o policial que tinha cara de marginal, e eu trabalhava de terno e gravata. O Policial, para não morrer espancado por aquele louco, teve que atirar duas vezes, e acertou o abdome e perna direita do alemão.

Perdi um carro, o policial tomou a maior surra da vida dele, o cara da Kombi foi parar no presídio com dois tiros por flagrante de agressão e lesão corporal contra um policial. Que jogo sujo.

domingo, maio 14, 2006

Bicha de Bagé.

Para abrir o blog com chave de ouro.
Ps.: Este estereótipo foi usado unicamente para fazer um "caricato" na situação, satirizando a mesma, sem preconceitos.


A Bicha de Bagé

As gurias, na metade da década de 1960 só davam depois de casadas. Os guris do interior ainda tinham como aliviar as espinhas da cara, com umas ovelhas lindas e outras simpáticas galinhas ou até umas éguas nos barrancos da vida, mas na cidade não tinha este consolo. Para quem tinha de 16 até os 20 anos, era uma situação bastante difícil. Tinha zona, com suas luzes vermelhas, mas não tinham dinheiro nem idade para pensar em freqüentar estes estabelecimentos esfumaçados e proibidos.
Quase toda paquera nesta época se dava na Rua da Praia. Pelas 17 horas, eram as gurias que saíam das escolas normais, dos ginásios e científicos. Era um desfile sensacional, as mais lindas gurias de PoA desfilavam num vai e vem maravilhoso de cores de olhos e tamanhos de cabelos, e quase todas de uniformes azul marinho. Isto durava até 17h45min em media. As 18h30min já começava a escurecer, e as lojas já iam fechando suas portas. O movimento de pedrestes já começava dispersar, quando então eles começavam a surgir. Os gays.
Era incrível como eles davam em cima de alguns de meus amigos, oferecendo presentes como calças Lee legítimas, relógios, dinheiro e outras coisas mais. Eles iam com os gays e voltavam cheios de razão, não se sentindo nem um pouco “menos homens” por terem sidos os “ativos”, era uma coisa natural este tipo de relacionamento, nem um pouco questionado por ninguém, ninguém achava que o cara era menos homem por ter comido e faturado uma bicha. Eu confesso que muitas vezes fiquei com inveja destes meus amigos já que as bichas nunca me acharam atraente para eles. Não davam em cima de mim.
Na metade da década de 80, fui comercializar uma revista na cidade de Bagé. Meu diretor me pediu que procurasse na cidade um colaborador da editora, que de vez em quando enviava algumas fotos, e entregasse um presente e o convidasse para um almoço. Sabia que o cara era fotógrafo, mas fui pensando que ele era um repórter fotográfico. Na realidade, o que ele fotografava era casamentos, batizados, formaturas e fotos 3 x 4.
Chegando lá, pude ver a figura. Era um gaúcho baixinho, simpático, entroncado, tinha um bigodão avermelhado, barba por fazer, o pescoço era roliço e emendava com o queixo, o nariz era atarracado junto a boca que ficava escondida atrás do bigode (mas parecia mesmo o focinho de um porco). Tinha a pele ensebada de suor, uma respiração ofegante, vestia bombachas, alpargatas, um quepe de couro e um lenço fino de seda azul no pescoço. Depois das apresentações, ele me disse que poderia me indicar uma empresa na cidade para anunciar, ele mesmo conhecia uma indústria que anunciaria e me levaria até ela no fim da tarde daquele mesmo dia. Ficamos combinados.
No fim da tarde, após longas conversas, ele lembrou-se da indústria que me prometera apresentar. Ele quis ir na Kombi-furgão dele. Achei meio estranha aquela Kombi, além do banco da frente atrás não tinha nada, só alguns cobertores forrando o chão. Saímos da cidade e entramos numa via de chão batido com plantações de arroz dos dois lados em direção do que parecia ser um sitio. Quando estávamos nos aproximando, pude notar que ele não tirava os olhos de mim. Não pude deixar de pensar que ele estava querendo me comer, mas antes que eu pudesse raciocinar algo, vi uma construção muito antiga com o telhado de zinco todo enferrujado que um dia foi abrigo para bois. Perguntei a ele se ali era a indústria, ele disse que sim, e me levou à uma casa toda velha caindo aos pedaços. Ele disse que era sua indústria de sabão, que havia comprado uma franquia e que iria ficar muito rico com este novo negocio. “Tá legal, esta vista”, disse eu, “não vamos descer”. Pensei: “se eu desço tô fudido”. “Vamos fechar o negocio do anuncio lá no teu estúdio, me leva de volta agora que eu tenho um compromisso neste instante”. Ele ficava insistentemente tentando me convencer a descer para eu ver por dentro da fabrica de sabão, mas viu que não tinha jeito. Ficou com uma expressão de tamanha tristeza, que me marcou. Quando estávamos voltando, e já dava para ver as luzes da cidade, ele parou a kombi em baixo de uma cinamomo enorme e botou a mão na minha perna. No impulso eu puxei ligeiro e gritei “O QUE É ISTO, MEU???”
Ele arregalou os olhos, apertou aquele seu focinho de porco, botou as mãos na cintura delicadamente e disse, como numa confissão: “EU SOU MULHEEER!!!”
Desci correndo da kombi e pude notar que ele voltava para fabrica, fui correndo até o Hotel, devo ter corrido uns 6km de terno e gravata sem respirar, apavorado.
Não contei esta história à ninguém na época, já que eu estava um pouco... Traumatizado. Mesmo que eu não levasse à diante esta história, tentando enterrá-la no fundo da minha memória, eu não poderia mesmo esquece-la.
Dois dias depois, a bicha de Bagé foi encontrada enforcada em sua fabrica de sabão.