domingo, agosto 13, 2023

APAGAMENTO

Jesus me disse que acordou assustado, com uma dor de cabeça insuportável e louco de sede em um lugar horrível, escuro, iluminado por uma lâmpada muito fraca, esfumaçado e fedorento. Viu que havia outros homens, aparentemente mendigos, maltrapilhos e desgraçados. Aos poucos, percebeu que estava em uma cela de um presídio. Não conseguia compreender nada, tudo era confuso.


Ficou quieto em um canto, desejando loucamente um cigarro, mas não queria pedir. Supôs que os homens presos ali eram ladrões, assassinos, traficantes, ou que estavam ali pela lei Maria da Penha. Pela maneira que eles falavam entre si eram bandidos de longa data, acostumados com a ida e vinda no presídio, já que tinham tatuagens e trejeitos de quem já conhece o ambiente. Uns tinham o olhar frio, distante. Outros encaravam diretamente, sem expressão ou com um olhar de ódio. Tentou forçar a memória e lembrar porque havia sido preso. Lembrou que tudo tinha acontecido na sexta-feira pois recebeu seu salário semanal. Lembrou que foi pro bar e gastou todo seu dinheiro em cerveja. Ficou sentado ali no chão, no piso frio e sujo, próximo do que chamavam de 'boi'. Um cheiro insuportável dificultava o esforço mental para recordar o que tinha acontecido.

O sábado passou muito rápido. Nem viu o tempo passar. No domingo à tarde teve coragem para perguntar ao carcereiro se a esposa ou a sogra haviam deixado alguma carteira de cigarros ou qualquer outra coisa para ele. O carcereiro respondeu com uma expressão de nojo, cuspindo no chão:

"Cara, tu matou sua mulher e tua sogra, não lembra?"

Ficou em choque. Não conseguia acreditar no que estava ouvindo. 

Não lembrava de nada. O carcereiro explicou que havia sido preso por tê-las matado a facadas. Ele amava a esposa, ela era a pessoa mais perfeita, íntegra, honesta, trabalhadora... era loucamente apaixonado. A sogra era a bondade toda dentro dela. Uma mulher religiosa, caridosa que atendia todo mundo com muito carinho e tinha os acolhido em sua casa depois que ficou desempregado. 

Jesus não conseguia acreditar. Logo ele que nunca havia feito nada de errado na vida. Um homem bom, trabalhador, honesto, um marido e genro amoroso. Ele não conseguia entender como poderia ter feito algo tão terrível.

Foi levado para uma sala de interrogatório e foi interrogado pela polícia por horas. Ele tentava explicar que não lembrava de nada, mas eles não acreditaram. Os policiais disseram que estava mentindo, tentando encobrir seu crime hediondo. Foi levado para o tribunal e condenado à pena máxima por duplo homicídio, sem a possibilidade de liberdade condicional.

Ele agora está há 10 anos na prisão. Ainda não lembra de nada do que aconteceu naquela noite. Todos os dias ele quer desesperadamente descobrir a verdade. Quer saber se realmente matou a esposa e a sogra. Precisa saber se é um monstro.

12 comentários:

Anônimo disse...

É uma história que trata de um assunto muito profundo e ao mesmo tempo misterioso.Relata um duplo femenicidio onde o autor sofreu um surto psicotico e mesmo com o passar dos anos em uma prisão, o autor dos crimes não consegue entrar na realidade daquele dia.uma história quem espaço para uma continuação, tanto sobre a parte jurídica, como na parte mental do criminoso.

Anônimo disse...

Uma forma dinâmica de narrativa ,sobre um assunto que sempre gera polêmica jurídica e social.

Anônimo disse...

Na amnésia alcoólicas, o juiz também pode considerar que a pessoa ainda era capaz de entender que o que estava fazendo era errado e, portanto, ainda é responsável por seus atos. No final, a decisão de se uma pessoa é ou não imputável por um crime cometido sob efeito do álcool cabe ao juiz.

Augusto Pedrosa disse...

Muito bom texto, bem escrito e arrepiante. Uma história que daria um filme!

Anônimo disse...



Parabéns pelo texto bem escrito, informativo e assustador. Eu certamente vou recomendar a outras pessoas, principalmente as que estão bebendo muito. Janaína Koerich

Alfonso André de Albuquerque disse...

Um ótimo texto sobre uma situação trágica e terrível! Um abraço do André!

Dalva Gonçalves Flôres disse...

Que situação tristíssima esta a narrada! E muito bem narrada! Me dói imaginar a situação desta família do protagonista. Espero que atrocidades como esta nunca mais se repitam na vida real. De resto, excelente escrita!

Diéferson Dantas disse...

Complicado! A bebida mexe com a cabeça do cara mesmo! Pelo menos preso não bebe mais.

Dr. Augusto Américo Frozza disse...

Parabéns pelo texto, Eloy. Como advogado criminalista estou acostumado a acompanhar casos como este ou piores. Sou desses que acredita que a ficção pode conscientizar e tocar as pessoas. Mais uma vez, parabéns.

Anônimo disse...

Realidade impactante e triste ☹️ . O " Apagamento" é resultado quase inevitável neste caminho . Desejo que a bela escrita seja uma reflexão valiosa ao encontro de muitos irmãos 💪🙌🙏☀️

Paulo H. disse...

A pergunta que me vem é se posso chamar o texto de ficção, mesmo sabendo que é uma realidade vivida por muitas pessoas que perdem o dominio sobre seus atos e a memoria em relação a eles. Seja por uso de alguma substância que altere o comportamento e a capacidade de ver o mundo, seja por algum mal, sindrome, transtorno mental, etc... O que é pior? Lembrar da desumanidade do ato? Ou não saber se o cometeu ou não?

Di disse...

No primeiro parágrafo, eu comecei a leitura rindo e acabei o texto quase chorando.
Muitas emoções em uma história só, parabéns ao riquíssimo escritor.
Quem será que é responsável por essas coisas acontecerem?
Será que existe um culpado só?
O órgão que libera a venda e super incentiva o uso de uma substância que altera a pessoa a ponto de perder a lucidez, gerar um filho sem querer e sem ter condições e abandonar ou maltratar depois, contrair uma doença, perder a família e amigos, perder anos na prisão sem lembrar o motivo, adquirir depressão pelo uso contínuo de uma substância depressiva.
Enquanto o povo aceitar a manipulação de incentivo das mídias, sofrerá consequências e pagará por ela.