domingo, maio 21, 2006

O Flagrante


Durante uma tempestade que caía sobre a noite de Porto Alegre, acontecia uma perseguição espetacular, com “roleta Russa” no transito, acidente de carro, prisão, agressão com chave de rodas, tiros e o flagrante.


O Grêmio disputava a taça Libertadores da América no ano de 1984, e, na hora do jogo, caía há algumas horas sobre Porto Alegre a maior tempestade, e pelo jeito ainda ia longe aquela chuva de pingos grossos. Nesta noite de sexta-feira, todos os bares que tinham TV estavam ligados nesta decisão e estavam cheios, e embora chovesse muito, não estava frio. Eu claro estava assistindo e bebendo todas, cerveja com vodka e secando o Grêmio. O bar, que era do Chico, um japonês, ficava entre o Shopping Iguatemi e o Hospital Nossa Senhora da Conceição, uma paralela da Anita Garibaldi. Antes de acabar o jogo eu já estava completamente bêbado e resolvi ir embora.

Neste ano eu tinha uma Brasília branca, 82, quatro portas, com um carburador modelo exportação que comprei do jornal O GLOBO e acreditava que só a Policia Federal tinha uma outra igual. O limpador de pára-brisas não vencia a quantidade de chuva. Passei devagar em frente do hospital Nossa Senhora da Conceição e, percebendo as luzes das janelas acesas, pude verificar que não tinha movimento habitual, todos estavam assistindo ao jogo, até os doentes.

De repente, uma Kombi escolar me corta pela direita, já quase na esquina da Assis Brasil. O motorista ameaçou abrir sua porta com cara de raivoso, me assustei e fui acelerando devagar, olhando pelo retrovisor a reação inesperada, imaginando que tivesse dado uma fechada nele ou até mesmo batida na Kombi, mas resolvi não parar. O motorista da Kombi puxou a janela de correr e me ameaçava colocando o braço para fora. Acelerei e entrei na Avenida Assis Brasil com o sinal fechado e o cara entrou junto. Na minha loucura alcoólica, comecei gostar daquela perseguição, me senti como num filme. Na esquina da estrada do Forte, a sinaleira também estava vermelha, fechei os olhos e, como numa roleta russa, atravessei e ele também passou. Passamos ainda outra sinaleira e entrei à direita no Jardim Sabará, e notei agora que também me perseguia um fusca preto e branco da policia com a sirene vermelha ligada. Vi que tinha sujado e comecei procurar algum flagrante dentro do meu carro, não tinha nada, estava limpo.

Pensei em ir até o Clube Ipiranguinha onde todo mundo me conhecia, mas quando dobrei a direita e com toda aquela chuva, o carro derrapou e abraçou literalmente uma árvore. Bati o peito e a boca, estava sangrando e louco de dor quando o policial abriu minha porta deu-me uma gravata e engatilhou um revolvão na minha cabeça com a famosa frase: “Tá preso...” Eu respondi: “Me entrego, me entrego...”.

Nisto, desce da Kombi um baita alemão de 1,90 m e uns 110 kg com uma chave de roda na mão. Veio com muita raiva, eu fechei os olhos e ele bateu, acertou a cara do policial que começou a sangrar e caiu surpreso no chão, e o alemão continuou batendo com a chave de rodas, batia nos peitos, braços e pernas, nesta confusão eu fui me afastando em direção do Ipiranguinha. De repente ouvi dois tiros e o alemão caído no chão. Nisto aparece umas três viaturas da Brigada Militar travando e queimando pneus, e o policial caído apontando pra mim, e dizendo “lá vai o ladrão, lá vai o ladrão!” e eles começaram a atirar contra mim, ouvia o sibilar das balas passando pela minha cabeça e corpo, quando eu levantei os braços e disse novamente: “Me entrego, me entrego!” Os brigadianos me algemaram e me colocaram pra dentro do camburão. Meia hora depois, podia ver que estávamos no pronto socorro, ficamos algumas horas lá e de vez em quando vinha um policial, levantava a porta do camburão e dizia que eu era dele e ele iria me pendurar.

Depois fomos para a central de policia na Avenida Ipiranga e ninguém falava comigo mesmo depois deles terem me identificado. Todo mundo estava dentro da sala do delegado de plantão e eu ali sem entender o que tinha acontecido. Logo saíram uns policiais dizendo “flagrante, vai baixar o presídio”. Eu pensei “to fudido... mas o que será que eu fiz?”. Acharam alguma coisa no carro, nisto sai um cara todo machucado em minha direção, tinha perdido vários dentes, sua boca estava inchada, sem camisa todo enrolado por gazes, nas costelas, e um braço engessado na tipóia, chega pra mim e diz: “este pau era pra ti”. Foi quando me chamaram e me explicaram que eu seria testemunha do acontecido e me explicaram a situação:

O cara da Kombi também tinha uma Brasília igual a minha e achava que só ele tinha em Poa. Bêbado, também imaginou que eu tinha roubado seu carro e passou me perseguir, e como tinha rádio na Kombi, pediu socorro e disse que perseguia um ladrão. Quando bati meu carro e o Policial me deu voz de prisão, ele imaginou que o ladrão já tinha dominado o policial que tinha cara de marginal, e eu trabalhava de terno e gravata. O Policial, para não morrer espancado por aquele louco, teve que atirar duas vezes, e acertou o abdome e perna direita do alemão.

Perdi um carro, o policial tomou a maior surra da vida dele, o cara da Kombi foi parar no presídio com dois tiros por flagrante de agressão e lesão corporal contra um policial. Que jogo sujo.

domingo, maio 14, 2006

Bicha de Bagé.

Para abrir o blog com chave de ouro.
Ps.: Este estereótipo foi usado unicamente para fazer um "caricato" na situação, satirizando a mesma, sem preconceitos.


A Bicha de Bagé

As gurias, na metade da década de 1960 só davam depois de casadas. Os guris do interior ainda tinham como aliviar as espinhas da cara, com umas ovelhas lindas e outras simpáticas galinhas ou até umas éguas nos barrancos da vida, mas na cidade não tinha este consolo. Para quem tinha de 16 até os 20 anos, era uma situação bastante difícil. Tinha zona, com suas luzes vermelhas, mas não tinham dinheiro nem idade para pensar em freqüentar estes estabelecimentos esfumaçados e proibidos.
Quase toda paquera nesta época se dava na Rua da Praia. Pelas 17 horas, eram as gurias que saíam das escolas normais, dos ginásios e científicos. Era um desfile sensacional, as mais lindas gurias de PoA desfilavam num vai e vem maravilhoso de cores de olhos e tamanhos de cabelos, e quase todas de uniformes azul marinho. Isto durava até 17h45min em media. As 18h30min já começava a escurecer, e as lojas já iam fechando suas portas. O movimento de pedrestes já começava dispersar, quando então eles começavam a surgir. Os gays.
Era incrível como eles davam em cima de alguns de meus amigos, oferecendo presentes como calças Lee legítimas, relógios, dinheiro e outras coisas mais. Eles iam com os gays e voltavam cheios de razão, não se sentindo nem um pouco “menos homens” por terem sidos os “ativos”, era uma coisa natural este tipo de relacionamento, nem um pouco questionado por ninguém, ninguém achava que o cara era menos homem por ter comido e faturado uma bicha. Eu confesso que muitas vezes fiquei com inveja destes meus amigos já que as bichas nunca me acharam atraente para eles. Não davam em cima de mim.
Na metade da década de 80, fui comercializar uma revista na cidade de Bagé. Meu diretor me pediu que procurasse na cidade um colaborador da editora, que de vez em quando enviava algumas fotos, e entregasse um presente e o convidasse para um almoço. Sabia que o cara era fotógrafo, mas fui pensando que ele era um repórter fotográfico. Na realidade, o que ele fotografava era casamentos, batizados, formaturas e fotos 3 x 4.
Chegando lá, pude ver a figura. Era um gaúcho baixinho, simpático, entroncado, tinha um bigodão avermelhado, barba por fazer, o pescoço era roliço e emendava com o queixo, o nariz era atarracado junto a boca que ficava escondida atrás do bigode (mas parecia mesmo o focinho de um porco). Tinha a pele ensebada de suor, uma respiração ofegante, vestia bombachas, alpargatas, um quepe de couro e um lenço fino de seda azul no pescoço. Depois das apresentações, ele me disse que poderia me indicar uma empresa na cidade para anunciar, ele mesmo conhecia uma indústria que anunciaria e me levaria até ela no fim da tarde daquele mesmo dia. Ficamos combinados.
No fim da tarde, após longas conversas, ele lembrou-se da indústria que me prometera apresentar. Ele quis ir na Kombi-furgão dele. Achei meio estranha aquela Kombi, além do banco da frente atrás não tinha nada, só alguns cobertores forrando o chão. Saímos da cidade e entramos numa via de chão batido com plantações de arroz dos dois lados em direção do que parecia ser um sitio. Quando estávamos nos aproximando, pude notar que ele não tirava os olhos de mim. Não pude deixar de pensar que ele estava querendo me comer, mas antes que eu pudesse raciocinar algo, vi uma construção muito antiga com o telhado de zinco todo enferrujado que um dia foi abrigo para bois. Perguntei a ele se ali era a indústria, ele disse que sim, e me levou à uma casa toda velha caindo aos pedaços. Ele disse que era sua indústria de sabão, que havia comprado uma franquia e que iria ficar muito rico com este novo negocio. “Tá legal, esta vista”, disse eu, “não vamos descer”. Pensei: “se eu desço tô fudido”. “Vamos fechar o negocio do anuncio lá no teu estúdio, me leva de volta agora que eu tenho um compromisso neste instante”. Ele ficava insistentemente tentando me convencer a descer para eu ver por dentro da fabrica de sabão, mas viu que não tinha jeito. Ficou com uma expressão de tamanha tristeza, que me marcou. Quando estávamos voltando, e já dava para ver as luzes da cidade, ele parou a kombi em baixo de uma cinamomo enorme e botou a mão na minha perna. No impulso eu puxei ligeiro e gritei “O QUE É ISTO, MEU???”
Ele arregalou os olhos, apertou aquele seu focinho de porco, botou as mãos na cintura delicadamente e disse, como numa confissão: “EU SOU MULHEEER!!!”
Desci correndo da kombi e pude notar que ele voltava para fabrica, fui correndo até o Hotel, devo ter corrido uns 6km de terno e gravata sem respirar, apavorado.
Não contei esta história à ninguém na época, já que eu estava um pouco... Traumatizado. Mesmo que eu não levasse à diante esta história, tentando enterrá-la no fundo da minha memória, eu não poderia mesmo esquece-la.
Dois dias depois, a bicha de Bagé foi encontrada enforcada em sua fabrica de sabão.