Tão bonitinha, tão delicadinha, tão limpinha e tão loirinha. Suzane von Richthofen.
“Senta aí que eu vou contar a versão de Estevão.”, disse Jesus:
Eles eram quase crianças quando o amor aconteceu, desses que chegam antes de qualquer experiência, antes das cicatrizes do mundo. Ela, com seus 13 anos, e ele com 14 anos, apareceu um dia no prédio onde ele morava. Trazia nos braços uma pilha de roupas limpas, cheirando a sol e sabão de barra, passadas com capricho pela mãe, lavadeira. Era loirinha, com cabelos presos em “rabo de cavalo”, olhos azuis, um rosto que iluminava o corredor. Ele nunca soube dizer se foi destino, ingenuidade ou fome de afeto, mas ali, naquele encontro tímido, nasceu um amor que parecia para sempre.
A primeira paixão. A primeira namorada.
Por algum tempo, tudo foi doce como fruta madura. Mas a doçura também tem seu fim, e às vezes o amor envelhece antes mesmo de crescer. Um dia, no parque da Redenção, sem aviso, ela explodiu, um surto. Algo nela virou tempestade. Ficou vermelha como brasa, olhos acesos num ódio que ele nunca tinha visto. Partiu para cima dele com fúria inexplicável. Ele correu, envergonhado, enquanto ela atirava pedras para machucar. Depois serenou, como se nada tivesse acontecido.
Casaram-se, mesmo assim. Acreditavam que casamento cura feridas, que amor conserta almas. Foram morar no bairro Teresópolis. E com o tempo chegaram as brigas, muitas, quase todas, alimentadas pelo alcoolismo dele. Porque ninguém aguenta um homem chegando todos os dias em casa bêbado, falando um monte de merda, arrastando o peso das garrafas para dentro da sala. Ela não suportava, e muitas das agressões vinham exatamente nessas noites em que ele mal se sustentava em pé.
E ele sabia disso. Sabia que, embora ela tivesse a violência dentro dela desde muito antes, o álcool dele era gasolina no incêndio.
Houve um dia em que ela o arranhou, gritou como se quisesse que o mundo assistisse. Os vizinhos chamaram a polícia. Ele, machucado. Ela, intacta. Ele foi levado preso. Quem o libertou foi o cunhado advogado. Na delegacia ouviu dos policiais: “ela não tem nenhum arranhão”. E ele sangrava.
Ela carregava um ódio antigo. Ódio do pai, também alcoólatra. Muitas vezes o expulsava de casa sob chuva, empurrava para dormir com os cachorros. Cravava as unhas no rosto dele, cuspia-lhe na boca, nos olhos. E o pai ria. Era uma cena que ele nunca esqueceu.
De tanto apanhar, ele cansou. Mas mesmo cansado, continuou perdendo. Até um tiro ela lhe deu. Ele estava sentado no chão da sala, bêbado, assistindo a um Gre-Nal, quando ela entrou, apontou o revólver com as duas mãos, olhou para o lado e atirou. O tiro pegou no chão, perto do seu abdômen. A sala encheu de fumaça. Ela pegou os filhos e fugiu para a casa dos pais.
Sobreviveu, talvez porque Deus ainda não tinha desistido dele.
Separaram-se mais tarde, depois da segunda internação dele na clínica Pinel. Ele parou de beber. Prometeu a si mesmo que não voltaria a beber. Mas o amor, quando não morre, vira vício. Continuaram se encontrando apaixonadamente em motéis, como quem tenta reacender o fogo que só machuca. Eles se amavam e choravam de soluçar nus pela separação. Ele não sabia, ou não queria ver, que ela já dividia o coração com um médico ortopedista do Hospital pronto socorro da av. Assis Brasil.
Um dia, indo a um motel no Morro Santa Teresa, ela pediu que passassem na rua Silvério. “Quero ver a casa do pai de um aluno”, disse. Hoje ele sabe: era a casa do médico. Dois homens ocupando o mesmo lugar sem saber.
A última briga nasceu de ciúme, essa chama que devora a lucidez. Ele ia viajar para vender livros médicos para a Livraria Sul-Americana, passou antes na casa dos tios dela, em Canoas. Entre café e conversa, disseram que ela havia assumido o namoro com o médico. O fogo subiu nas veias dele.
Voltou correndo para Porto Alegre. Esperou. Quando ela chegou, não trocou palavra — pegou uma tesoura e veio para cima dele. Ele tomou a tesoura, ela arranhava, gritava. Ele correu para o carro. Ela pegou um paralelepípedo para quebrar o para-brisa. Ele segurou o pulso dela; a pedra era pesada. Nesse instante, ela machucou o dedo. Ele conseguiu entrar no carro e fugiu.
No dia seguinte, uma intimação na porta: 10ª DP, Vila Jardim.
Ao chegar, as pernas amoleceram. Ela estava toda enfaixada — braços, pernas, abdômen, cabeça, como quem sofrera um atropelamento. Ele sabia que o único ferimento era o dedo. Mas a imagem de uma mulher inteira enfaixada fala mais alto que a verdade. E os filhos, como olham para uma mãe assim? Que lembrança fica na alma de uma criança?
Depois entendeu. O médico — namorado malandro, caçador, dono de cães que mataram uma criança de 7 anos — era ortopedista no hospital onde ela foi atendida. Foi ele quem enfaixou tudo.
Na delegacia ela recusou fazer corpo de delito, recusou BO. O delegado mandou ele se manter a 500 metros dela e ir embora.
Ele era o vilão perfeito. Armaram. Ela entrou para o drama; o médico, para a vida dela.
E é isso.
Essa é a verdade que ele carrega.
Crua. Incômoda. Dele.
“Este conto ficcional integra a obra Jesus Me Disse.”

Um comentário:
"Adúlteros são a forma mais baixa de ser humano. Eles não merecem respirar o mesmo ar que eu!"
Vera Lucia
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