O Peso
Morro da Lagoa da Conceição – Agosto de 2003
— Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!
A frase caiu como um trovão. Jesus ficou em choque, sentindo as bases de sua vida desmoronarem.
Lembrou-se, como se fosse ontem, de uma noite na década de 70. Voltava para casa bêbado, como de costume, no último ônibus da linha Vila Cecília/Viamão. Mas aquela noite era diferente. Não brincava, falava ou ria como geralmente fazia. Estava calado, absorto em pensamentos.
O ônibus não estava cheio, mas quase todas as poltronas estavam ocupadas. Ele se sentou logo após a catraca. De repente, risadas e gritos vieram do fundo do veículo. Um grupo de jovens o chamava de “corno”, debochando sem pudor. Ele fingiu que não era com ele, fechou os olhos e tentou parecer que dormia.
Quando desceu no ponto, ouviu novamente:
— Corno!
Mais risadas.
O sangue ferveu, mas ele pensou: Capaz que sou corno! Minha mulher, a Heliana, é super caprichosa, cuida tão bem das nossas duas filhas, da casa. Nunca sai de casa. Isso nunca poderia acontecer. E o meu pai... Passa o dia lá, plantando no quintal... Só não lembro exatamente o que ele planta.
Os dias passaram, mas as provocações martelavam sua cabeça. Incapaz de ignorá-las, Jesus contou a Heliana o que aconteceu no ônibus. Assim que terminou, ela empalideceu e disse, quase em pânico:
— Nós vamos embora daqui!
Heliana entrou em contato com o tio Tobias, que tinha um caminhão de mudanças. Em poucos dias, a família se mudou para a casa dos pais dela.
O novo lar era precário. Uma das paredes estava inacabada, aberta para o céu. O pai de Heliana, Seu Noé, improvisou um quarto para eles, fechando parte de sua oficina de ferreiro. Passava os dias entre a marreta, ferros em braza a bigorna e a cachaça.
Heliana odiava o pai profundamente. Quando ele bebia e brigava com a mãe, ela o enfrentava com unhas — e até cuspidas. Era uma relação marcada pelo rancor e pelo ódio ao pai alcoólatra, a mesma enfermidade que acometia Jesus.
Certo dia, ele ouviu Heliana conversando com a mãe:
— Estou grávida de novo.
A mãe, resignada, respondeu:
— Onde comem dois, comem três.
Jesus ficou inquieto. Grávida? Como? Ela sempre exige camisinha. Só se rompeu...
Meses depois, Victor nasceu. Quando o menino já estava maior, a família foi à pracinha em frente à igreja Nossa Senhora do Trabalho. Enquanto Victor brincava no balanço, Heliana comentou:
— Já notou que filhos de pais bem mais velhos que as mães são muito mais bonitos?
Jesus ficou desconcertado. Ela acha que nosso filho não é bonito?
Além disso, Heliana repetia como um mantra:
— Só as mães sabem de quem são os filhos. Os pais nunca têm certeza.
O comentário reverberava em sua mente, mas ele engolia tudo em silêncio. Muitos anos se passaram.
Então, seis anos após a separação, veio a ligação.
— Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!
O chão sumiu. Em segundos, sua mente revisitava todas as noites voltando bêbado, as manhãs evitando cruzar com o pai no quintal. Como uma sombra, ele sempre estava lá, capinando. Havia acabado de se aposentar da Marinha. Tinha cinquenta e poucos anos, nunca bebeu, nunca fumou, era bem jovem para a idade que tinha.
Agora fazia sentido. As risadas no ônibus. Os comentários de Heliana. Tudo.
O filho que ele tanto amava — o único homem entre as três meninas — não era seu. Era de seu pai.
Num instante, Jesus perdeu um filho e um pai. Pensou em matar o velho que tanto admirava, o pai que o inspirara com histórias de marinheiro e aventuras pelo mundo. Jesus também sonhara em ser marinheiro, mas Heliana engravidara antes que ele pudesse realizar esse sonho. Agora, tudo estava destruído.
Desesperado e chorando, vagou pelo centro de Florianópolis, pensando em tirar a própria vida ou acabar com a de Heliana e de seu pai. Foi quando, por acaso, entrou em uma farmácia homeopática. A farmacêutica, percebendo seu estado, pegou suas mãos e perguntou:
— O que está acontecendo?
Chorando, Jesus desabafou todo o sofrimento. A mulher ouviu em silêncio. Quando ele terminou, ela disse:
— Meu filho, esse peso não é teu. Solta ele agora. Esse peso é deles, do teu pai e da tua ex-mulher.
As palavras foram como um milagre. Jesus sentiu um alívio inesperado. Era verdade: aquele peso não era dele...