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sexta-feira, maio 23, 2025

Um Mês com Outro Figado

 



Por Eloy

Tenho 73 anos. Nunca pensei que, nessa idade, estaria dizendo isso: faz um mês que recebi um novo fígado. Um mês desde que abri os olhos depois da cirurgia e soube que tinha sobrevivido. Estava fisicamente muito bem antes da operação, mesmo com o carcinoma hepatocelular. Não sentia sintomas, andava, raciocinava, escrevia. Mas dentro de mim havia algo me ameaçando em silêncio.

A espera foi longa. Entrei no hospital com a coragem que me sobrou e a certeza de que meu caminho agora era só meu. Às vezes, o medo afasta as pessoas. Levei minha fé comigo e o apoio de um casal de filhos, meu genro e de minha companheira que permaneceram. Isso bastou.

Quando acordei da cirurgia, tudo era outro tempo. Os dias passavam lentos no hospital HU. Os remédios me deixavam confuso, fraco, nunca irritado. A dor era suportável, mas o cansaço era constante. Cada passo era um desafio. Cada banho, uma vitória. Mas eu estava ali. Vivo.

Lembro do barulho das máquinas, dos passos dos enfermeiros, das luzes frias da UTI. Às vezes me sentia uma ilha. Outras vezes, sorria sozinho, lembrando do cheiro do café, do céu azul, de uma boa gargalhada. Coisas pequenas que pareciam impossíveis há pouco tempo.

Agora, um mês depois, a cicatriz ainda arde. O corpo continua negociando com os medicamentos. Mas há algo novo em mim: um pedaço de outra vida que veio me dar mais tempo. E isso é sagrado.

Hoje não peço certezas. Não peço explicações. Só agradeço. Por este dia. Por cada manhã.

Por ainda poder escrever.




quinta-feira, março 13, 2025

Estado Alterado de Consciência


Desde que vocês desceram das árvores e começaram a andar sobre duas pernas, carregam uma inquietação na alma: a necessidade de alcançar um "estado alterado de consciência". Querem escapar dos limites da carne, do peso do tempo e da solidão de serem humanos em um universo que se recusa a revelar seus segredos.

Eu vi os primeiros Homo sapiens mastigando raízes alucinógenas sob a luz das fogueiras, dançando até o amanhecer para conversar com deuses invisíveis. Observei os xamãs beberem chás que rasgavam o véu do mundo, trazendo mensagens dos antepassados e dos espíritos da floresta. E vi algo ainda mais sombrio: o êxtase do sangue. No primitivismo, a consciência era alterada também pelo sacrifício no fogo — homens, mulheres, crianças e animais eram oferecidos aos deuses, numa entrega que mesclava terror e transcendência. Em meio a esses rituais, muitas vezes surgia o ópio como uma forma de anestesiar as dores da existência. O sofrimento e a morte se tornavam pontes para outra realidade, um transe violento onde o espírito se despregava do corpo e tocava o desconhecido.

Hoje, trocaram as cavernas por bares iluminados a néon; as ervas sagradas, por drinques amargos; os tambores ancestrais, por raves e playlists do Spotify. Já não imolam corpos nos altares, mas continuam a se destruir — de formas menos ritualizadas, mas igualmente desesperadas.

A modernidade lhes deu conforto, mas não respondeu ao vazio que lateja no peito. Então, seguem navegando em barcos furados: o álcool, a pior de todas as drogas, que queima a garganta como um falso abraço; o cigarro, que afoga em nuvens efêmeras; o sexo e a masturbação, que viram fuga em vez de encontro. Há quem roube não por necessidade, mas pelo prazer frio de sentir algo — nem que seja o tesão de ser pego. Outros jogam suas vidas em jogos do Tigrinho e de pôquer, como se o azar do dado pudesse preencher a sorte que falta por dentro.

E, no meio desse furacão de vícios e desesperos, vejo a maconha flutuando como uma folha verde no rio. Não é santa, não é demônio. É apenas uma planta medicinal que acalma, distrai e, às vezes, ilumina — mas que, como tudo na vida, pode ser usada para fugir da jornada, em vez de contemplá-la. Comparada aos pervintins, e à lança perfume trazidas pelos militares na ditadura, ou ao crack e à cocaína, que corroem ruas e almas, ou ao álcool, que mata e transforma lares em campos de batalha, ela parece um desvio mais suave, menos nocivo.

No fim, talvez sejam todos viajantes clandestinos, buscando esse estado alterado de consciência para um céu que não existe. O que muda é o mapa: alguns tomam ayahuasca na selva, outros apertam um baseado na janela do apartamento. Porém, a pergunta que nunca cala não é sobre a substância, mas sobre vocês mesmos: para onde querem fugir? Ou melhor, que parte de vocês ainda não conseguem encarar de frente, sob a luz crua do dia?

A Terra já não é a mesma, mas o homem — ah, o homem! — continua a mesma criança assustada, acendendo fogueiras na escuridão, tentando encontrar sentido na fumaça. Eu sei. Eu sempre estive aqui. Eu vi.






quinta-feira, março 06, 2025

Sombras no Quintal

O Peso


Morro da Lagoa da Conceição – Agosto de 2003



— Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!

A frase caiu como um trovão. Jesus ficou em choque, sentindo as bases de sua vida desmoronarem.

Lembrou-se, como se fosse ontem, de uma noite na década de 70. Voltava para casa bêbado, como de costume, no último ônibus da linha Vila Cecília/Viamão. Mas aquela noite era diferente. Não brincava, falava ou ria como geralmente fazia. Estava calado, absorto em pensamentos.

O ônibus não estava cheio, mas quase todas as poltronas estavam ocupadas. Ele se sentou logo após a catraca. De repente, risadas e gritos vieram do fundo do veículo. Um grupo de jovens o chamava de “corno”, debochando sem pudor. Ele fingiu que não era com ele, fechou os olhos e tentou parecer que dormia.

Quando desceu no ponto, ouviu novamente:

Corno!

Mais risadas.

O sangue ferveu, mas ele pensou: Capaz que sou corno! Minha mulher, a Heliana, é super caprichosa, cuida tão bem das nossas duas filhas, da casa. Nunca sai de casa. Isso nunca poderia acontecer. E o meu pai... Passa o dia lá, plantando no quintal... Só não lembro exatamente o que ele planta.

Os dias passaram, mas as provocações martelavam sua cabeça. Incapaz de ignorá-las, Jesus contou a Heliana o que aconteceu no ônibus. Assim que terminou, ela empalideceu e disse, quase em pânico:

Nós vamos embora daqui!

Heliana entrou em contato com o tio Tobias, que tinha um caminhão de mudanças. Em poucos dias, a família se mudou para a casa dos pais dela.

O novo lar era precário. Uma das paredes estava inacabada, aberta para o céu. O pai de Heliana, Seu Noé, improvisou um quarto para eles, fechando parte de sua oficina de ferreiro. Passava os dias entre a marreta, ferros em braza a bigorna e a cachaça.

Heliana odiava o pai profundamente. Quando ele bebia e brigava com a mãe, ela o enfrentava com unhas — e até cuspidas. Era uma relação marcada pelo rancor e pelo ódio ao pai alcoólatra, a mesma enfermidade que acometia Jesus.

Certo dia, ele ouviu Heliana conversando com a mãe:

Estou grávida de novo.

A mãe, resignada, respondeu:

Onde comem dois, comem três.

Jesus ficou inquieto. Grávida? Como? Ela sempre exige camisinha. Só se rompeu...

Meses depois, Victor nasceu. Quando o menino já estava maior, a família foi à pracinha em frente à igreja Nossa Senhora do Trabalho. Enquanto Victor brincava no balanço, Heliana comentou:

Já notou que filhos de pais bem mais velhos que as mães são muito mais bonitos?

Jesus ficou desconcertado. Ela acha que nosso filho não é bonito?

Além disso, Heliana repetia como um mantra:

— Só as mães sabem de quem são os filhos. Os pais nunca têm certeza.

O comentário reverberava em sua mente, mas ele engolia tudo em silêncio. Muitos anos se passaram.

Então, seis anos após a separação, veio a ligação.

Alô, Jesus? Aqui é a Heliana. Escuta bem o que eu vou te falar: o Victor não é teu filho. O Victor é filho do teu pai!

O chão sumiu. Em segundos, sua mente revisitava todas as noites voltando bêbado, as manhãs evitando cruzar com o pai no quintal. Como uma sombra, ele sempre estava lá, capinando. Havia acabado de se aposentar da Marinha. Tinha cinquenta e poucos anos, nunca bebeu, nunca fumou, era bem jovem para a idade que tinha.

Agora fazia sentido. As risadas no ônibus. Os comentários de Heliana. Tudo.

O filho que ele tanto amava — o único homem entre as três meninas — não era seu. Era de seu pai.

Num instante, Jesus perdeu um filho e um pai. Pensou em matar o velho que tanto admirava, o pai que o inspirara com histórias de marinheiro e aventuras pelo mundo. Jesus também sonhara em ser marinheiro, mas Heliana engravidara antes que ele pudesse realizar esse sonho. Agora, tudo estava destruído.

Desesperado e chorando, vagou pelo centro de Florianópolis, pensando em tirar a própria vida ou acabar com a de Heliana e de seu pai. Foi quando, por acaso, entrou em uma farmácia homeopática. A farmacêutica, percebendo seu estado, pegou suas mãos e perguntou:

O que está acontecendo?

Chorando, Jesus desabafou todo o sofrimento. A mulher ouviu em silêncio. Quando ele terminou, ela disse:

Meu filho, esse peso não é teu. Solta ele agora. Esse peso é deles, do teu pai e da tua ex-mulher.

As palavras foram como um milagre. Jesus sentiu um alívio inesperado. Era verdade: aquele peso não era dele...