Ficção: Viagens na Maionese: Memórias de uma Vida em Transformação Um mergulho profundo nas experiências que moldaram minha vida, narrando histórias de mudanças, desafios e descobertas. Em cada capítulo, você encontrará uma jornada única, refletindo as nuances e complexidades de uma existência em constante evolução. Essas memórias, entrelaçadas com toques de fantasia e realidade
domingo, julho 16, 2006
Guri do bonde.
Uma das brincadeiras urbanas no ano de 1963, era pegar carona nos bondes. Enquanto o motorneiro e o cobrador ficavam na frente conversando, nós subíamos na porta de trás. Nossa prática era tão boa que saltávamos do bonde Duque em qualquer velocidade. Mas com o bonde Gasômetro não era bem assim, como pude constatar na reta da Rua Washington Luis até a ACM.
Eu só conhecia dois dos que já tinham conseguido tamanha façanha: o Alfeu e o Maninho, e por isto eram respeitados e admirados por todos os guris da Praça Alto da Bronze. Eles também se sentiam superiores por isto. Só superior a eles era o “Guri do Bonde”, que roubou um bonde da linha Petrópolis, numa tarde de domingo de ferias de verão.
Antes de entrar na matine do cine Ritz, o Guri observou que o motorneiro e o cobrador foram tomar uma cerveja no bar na frente do fim da linha, que ficava exatamente na frente do cinema, esperando a hora de voltar para o centro. Subiram alguns passageiros: casais com crianças pequenas que iam esperar sentados, no interior do bonde, para passear na Redenção ou no centro.
Quando ele viu aquilo, o bonde abandonado e chamando por ele, não resistiu. Subiu e moveu a alavanca como havia aprendido olhando o motorneiro dirigir. Quanto mais ele movia a alavanca para frente, o bonde corria mais descendo a Avenida Protásio Alves à toda velocidade, com funcionários da CARRIS correndo, gritando e fazendo gestos desesperados com seus blazers na mão como se fossem bandeiras desfraldadas. Só conseguiram pará-lo na Osvaldo Aranha, no Bom Fim, depois que o cobrador e motorneiro se apropriaram de um automóvel que parou para saber do ocorrido. - Em nome da lei, siga aquele bonde! – disseram eles. Ele foi preso e tornou-se noticia dos jornais, no qual lia-se na manchete “Guri rouba bonde”.
Era outono e já tinha anoitecido. A lua cheia deixava o rio Guaíba cor de prata. A usina estava a todo vapor soltando sua fumaça da cor de nuvens carregadas. As luzes de sua chaminé já estavam acesas como uma gravata colorida, e, ao lado, via-se o velho Cadeião do Gasômetro, destruído como um cenário de guerra. Encostei o ouvido no poste de ferro gelado e fiquei escutando o bonde, que já vinha na altura do quartel da Policia do Exercito, na Rua da Praia. Meu coração começou bater mais forte. Eu não tinha planejado nada – simplesmente tinha me dado na veneta. Desci da Rua Vasco Alves pela Duque de Caxias, apressado e determinado de que tinha que ser nesta noite. A lua também fazia brilhar os velhos paralelepípedos polidos pelo tempo como um espelho irregular e o par de trilhos tais quais duas serpentes de aço multicoloridas pelas luzes. Vi quando ele vinha dobrando da Rua da Praia entrando na Washington Luis. Era um “bonde gaiola”. Estremeci, mas estava determinado. Como sempre, o motorneiro e o cobrador vinham conversando na frente, em pé, com seus uniformes cor de caqui, gravatas pretas e de casquete na cabeça, tipo militar.
Nesse dia, o cobrador e o motorneiro fingiram que não tinham me visto subir na parte de trás do bonde gaiola, que alem de menor e mais rápido, sacudia de todo o jeito, tanto para cima e para baixo como para os lados. Estava curtindo a brincadeira, agarrado com uma mão no estribo e um pé no inicio do degrau, esticado com todo corpo para fora em forma de “X”, saboreando vento contra. Foi quando, nesta reta, eles imprimiram toda velocidade que o bonde suportava. Acho que era de 60 km. Eu ainda não tinha pulado com tal velocidade. De repente, o cobrador do bonde veio caminhando pelo corredor iluminado com aquela cara de cavalo feliz, suando todo dentro daquela roupa quente de linho, sorrindo e mostrando um baita de um dentão de ouro.
- Te peguei piá.
Eu pulei. Durante o pulo eu viajei, me senti voando: a adrenalina foi lá em cima com todo aquele vento frio contra meu corpo. Pensei por um momento que poderia planar como uma pandorga. Lembrei-me de minha mãe dizendo: “Eloy, sai deste vento, sai senão ele vai te carregar, guri...” Eu acreditava. Mas a viagem foi secamente cortada quando a parte de trás do bonde bateu em mim e me fez desequilibrar. Bati contra os paralelepípedos irregulares daquela rua. Rolei até bater no cordão da calçada, de lado. O bonde parou e dele saíram correndo em minha direção o cobrador, o motorneiro e alguns passageiros, pensando que eu tivesse morrido no salto. Mas me recuperando da queda e vendo que eles vinham em minha direção, sai correndo mancando em direção à General Alto, sangrando pelo nariz com um galo na cabeça e todo dolorido da queda, mas não quebrei osso nenhum. E ainda perdi um pé de meu Conga.
Depois disso, todas as vezes que eu tinha que pegar o bonde com minha mãe, eu fingia não conhecer o cobrador e ele fingia não me conhecer, mas via que ele ficava me olhando com a boca meio aberta mostrando seu dente de ouro, não acreditando que eu havia sobrevivido àquela queda.
.
pra mim os contos do Eloy me transportam para a Porto Alegre dos anos 70, quando eu vinha visitar esta cidade maravilhosa, apesar de os bondes já estarem extintos....gosto da idéia de resgate histórico...parabéns a vc Eloy.
ResponderExcluirCaramba !!
ResponderExcluirEm 68 fui morar no Alto Petrópolis na Rua Florêncio Igartua e andei muito naquele Bonde e tb fui naquele cinema que assisti "O Vale das Bonecas" e eu com um barrigão danado do meu filhóte,que hoje está com 38 aninhos. Hehe...
Adorei esta "viagem" ao passado!
bjks
Eloy!
ResponderExcluirAdoro suas viagens!!
Me transporto no tempo e viajo junto!!Relembro coisas que , de alguma forma, vivi também!
Beijo!
Fantástico Eloy!!!
ResponderExcluirVocê foi um menino bem travesso e
saudável, fez coisas que hoje os
meninos não fazem mais.
Gosto muito de ler seus contos ,
fico imaginando como a vida era
mais tranquila naqueles anos 60.
Não sabia que você havia curtido
os bondes, minha mãe conta dos bondes, que na minha infância já
não existiam mais aqui em Curitiba.
Parabéns amigo!!!
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir"Acabo de ler as informações do blog ViagensdoEloy e senti estar entrando no tunel do tempo....Na era do jato,do trem das nuvens da China ou do trem bala do Japão,lembrar dos bondes é uma forma de preservar na nossa memória um patrimônio que a sociedade de consumo está matando aos poucos: a saudade,as coisas simples,bucolicas e bonitas de pequenos encantos e recantos deste nosso imenso país e das pessoas incríveis que nele vivem."Parabens. Ana Amélia Lemos
ResponderExcluirUma delícia esse "bonde chamado memória".Dá vontede de ir junto.
ResponderExcluirEloy tu és um ótimo contador de histórias, atividade fantástica que os tempos modernos da TV e dos micros foi deixando de lado. Felizmente também sabes escrever bem e por isso nada está perdido. As histórias que um bom contador nos trás transcendem em muito aquilo que os suspeitos meios de comunicação desta trevosa era do consumismo alucinado nos impõem, a nossa vida, o nosso passado, pela boca ou letra tua não ficam perdidas e nem adulteradas. Continua!
ResponderExcluirrapaz...que escrita fantástica vc tem...ágil, me senti voando com vc a 60 kms por hora e vi uma Porto Alegre de um jeito totalmente diferente daquela que conheço(pelas obras da Sandra Jatahi Pesavento e da Yonisa). Os seus meninos do bonde se encontraram com os surfistas do trem do Carlos Roberto Monteiro de Andrade- Prof do Depto da fac. de arquitetura e urbanismo da USP, veja só a dedicatória de um texto (ferrovias, nômades e exilados)dele que li ontem: "Ao surfista ferroviário não por sua coragem e loucura, mas pelo uso lúdico que faz do trem, subvertendo o uso do vagão em um ato alucinado e irresponsável, que nos mostra os limites a que pode chegar uma juventude de exilados, nômades do capital"...acho que vou emprestar do Carlos e dedicar ao "Guri rouba bonde", bjs
ResponderExcluirCaham.
ResponderExcluirAcredito que vc saiba o que eu acho das suas crônicas, mas, pra reforçar (e inflar seu ego até se perder no ceu), eu repito:
Queridinhôôôô, já tá na hora de esfregar esses teus textos (obras de arte expressadas pelo dom divino dos escritores da humanidade culta, como vc preferir) na cara dos críticos de peso, meu filho. Faz um curta, faz um longa, faz um media, querido. Tu tens potencial, criatividade, tudo! A gramática, a fala, a forma de expressar os sentimentos que tu tens nos teus textos é invejável!
Eu juro que quase chorei lendo a história do Jesus menino.
Whatever, pai, vou parar de jogar na sua cara o que eu penso das tuas crônicas, afinal, não passam de "textículos".
Beijão, seu chato!
Muito bom, me fez lembrar uma vez que entrei num bonde com meus pais e um senhor com sotaque nordestino perguntou pro meu pai, o Sr é pai desse menino? E o velho Ney num misto de orgulho e desconfiança, disse sim.
ResponderExcluirE cidadão falou, esse menino vai morrer em baixo de um bonde. Não preciso contar a chegada em casa kkk