segunda-feira, janeiro 01, 2007

Guerra no Rio Guaíba.


O lago da Redenção já era pequeno demais para minhas aventuras náuticas, e, além disto, descobri que o seu Zé alugava barcos no rio Guaíba sem nenhuma exigência, então passei olhar as ilhas em frente do bairro Alto da Bronze como terras a serem conquistadas. Só tinha um problema... O dinheiro para o aluguel do barco ali era bem mais caro que os da Redenção.


Eu estava decidido a embarcar numa aventura até a ilha mais próxima e para isto comecei uma pesquisa no Colégio Paula Soares onde estudava, na 4º serie. Foquei um guri que poderia financiar esta empreitada. Notava que ele sempre andava com um bom corte de cabelos, boas roupas e um sorriso que ele não tirava do rosto nem mesmo brabo, via também que as professoras lhe dedicavam total atenção e às vezes ele era buscado de automóvel no colégio. No colégio nós éramos amigos, mas só no colégio. Nunca via ele na rua ou na pracinha com alguma turma de guris, mas ele tinha uma cara boa de gente legal e foi por isto que o convidei para esta primeira aventura, uma conquista da ilha pequena e ele topou na hora. Só tinha um problema: ele era de uma espécie de guri rico e bem cuidado. Depois vim saber que ele era mesmo. Filho único no meio de cinco irmãs mais duas mães. Eu ainda não sabia que as pessoas se separavam. Ele foi o primeiro guri que conheci filho de pais separados. Para começar eu teria que ir até sua casa pedir permissão para seus pais - coisa estranha, eu saia à hora que queria depois das aulas e meus amigos também, imaginava que todo mundo era assim como eu.
No dia combinado fui eu e meu irmão mais novo, Zezinho, até o amplo apartamento no edifico GBOEx, onde ele morava pedir permissão e mentir para ele ir comigo andar de barco na Redenção.
Fui interrogado pela sua madrasta durante vários minutos, ela fazia questão de me mostrar o quanto valia aquele guri e isto quase me fez desistir da aventura no rio e ir com aquele príncipe (cara ele tinha) pra redenção.
Eu falei:
- Eu me responsabilizo por qualquer coisa que poderá vir a acontecer com ele.
Ela então falou:
- Quer dizer se acontecer do André (Jockyman, filho do Sérgio, um dos maiores e melhor jornalista que já conheci) morrer, você vai me dar um outro André?
Aí me dei conta da enorme responsabilidade, pensei:
“Puta que pariu... que fria estão me metendo”.
Depois de meia hora de recomendações, para a minha surpresa e angústia, ela concordou. Agora era eu que não mais queria ir ao rio e sim remar no lago da redenção, mas o André e o meu irmão não quiseram aceitar as mudanças de planos. Já de cara comecei a me preocupar para atravessar as ruas quase pegando ele pelas mãos que ele soltava querendo mostrar rebeldia. Logo eu, que nunca me preocupava com nada até este dia.
Ele e meu irmão iam correndo na frente como cachorrinhos de apartamentos e eu atrás com o coração na mão:
- Cuidado com o bonde, olha os carros, meu Deus!
Quando chegamos para escolher o barco, escolhi o mais largo e com melhor estabilidade, porem ele era pesado e lento, mas sabia que este não viraria.
Notei quando estávamos chegando ao velho Zé que a turma da Rua Demetrio Ribeiro tinha seu próprio barco, e todos estavam soltando rojões na água e fazendo uma enorme algazarra, alguns mergulhando e dando caldinho nos guris menores e os outros em pé dentro do barco mostravam destreza e velocidade no remo.
O André sentou na proa e meu irmão na popa enquanto eu sentei no meio, no lugar dos remos sob protestos dos dois.
Eu já tínha remado um quinhetos metros da margem e vi que entrava água pelas frestas mal calafetadas do barco e por isto já tinha duas latinhas estrategicamente posicionadas para ir tirando a água de dentro. Isto achei normal.
Então... vi a turma da Demetrio Ribeiro se aproximar velozmente em nossa direção, atirando rojões às gargalhadas. Foi quando um dos rojões caiu dentro do nosso barco fazendo ele se estremecer todo, quase rachando suas tabuas velhas e frágeis.
Reconheci o alemão Edson, seu irmão Lauro, o Cadico, e o “traidor” Martelinho, morador da Rua Fernando Machado que estava nos remos rindo e fazendo a maior força. Eu ameacei de quebrar suas caras se eles continuassem. Ai mesmo que eles riam mais e jogavam mais rojões. Pedi que meus marujos:
- Tirem à água do barco, tirem à água...
A água já estava tapando nossos pés e isso me deixava aflito: o que fazer se o barco afundasse com aquele principe dentro dele? Eu daria outro André à madrasta? O suor escorria no meu rosto naquela tensão da guerra de barcos, que mais parecia um filme de piratas com canhões e espadas. Enquanto os piratas liderados por alemão Edson com sua cara de mal e um dente de ouro exposto pelo sorriso cínico, bombardeavam meu navio. E eu dizia: "Continuem tirando a água!", mais aflito do que nunca. Foi então que decidi lutar de frente para proteger o principe André. Me levantei e peguei o meu remo-espada, que serviu para que eu rebatesse as fortes e pesadas balas de canhão. Rebati uma, duas, três, até que o capitão pirata deixasse de sorrir. Mas mesmo com uma pequena vantagem, meu navio era muito fraco e a água, apesar do empenho de meus marujos, já estava nas nossas canelas. Olhei para margem e vi o velho Zé que vinha gritando e remando em nossa defesa da guerra. Os meus tripulantes estavam paralisados de medo, mas, mesmo assim, o André continuava com seu sorriso de Curinga. Foi então que, felizmente, percebemos que a correnteza estava à nosso favor. Percebi que o navio pirata deles estava ficando de lado para o nosso. Apesar de ser mais fraco, o meu navio era maior que o deles e, com isso, empurramos com toda a força o nosso contra o deles. O gigantesco navio pirata vacilou na água, e, logo depois, virou, para nossa felicidade e desespero da turma da Demetrio Ribeiro, que ficaram agarrados ao navio e assustados com os corpos dentro do rio.
Logo me dispersei da minha "viagem" de filme e, aliviado, vi que meus tripulantes marujos estavam salvos. Foi aí que eu vi o velho Zé, que chegou ralhando com eles. Fomos rebocados pelo barco do velho, já que o nosso ficou à deriva com água que já cobria nossas canelas, mas contentes e felizes como todos os vencedores.

Anos depois nos encontramos por acaso, na combatente e vibrante sucursal do Jornal O Globo, no 2º andar do edifício do Relógio na Rua da Praia. Lá trabalhamos juntos por vários anos, eu como representante do Dr. Roberto Marinho, ele na redação e o Zezinho, meu irmão, como motorista e distribuidor do jornal em Porto Alegre.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Doca das Frutas.

Não lembro mais o nome da comunidade que ficava do outro lado da rua Washington Luiz, para quem descia pela Gen. Portinho até a beira do rio Guaíba. Ali morava o velho Zé, um gaúcho calmo e pescador, que também alugava barcos para passeios. Ele estava sempre de bombachas camisa branca aberta e com um cinto largo e uma faca atravessada nas costa, com bainha de prata toda trabalhada, que com ela ficava picando fumo de ramo com um pé no barco e o olhar perdido no horizonte.
Um dia um outro morador um negão forte pra cacete, completamente bêbado se aproximou do velho Zé e deu um violento soco em sua cara. O velho Zé, antes de cair no chão, sacou rapidamente a faca da cintura e num golpe de cima para baixo abriu o peito forte do negão que ficou surpreso com a velocidade do golpe. A coisa mais feia que já tinha visto até aquele dia. O agressor arquejando em pé com um enorme talho no peito que deixava ver seu coração batendo por traz das costelas, e ele com olhos arregalados com aquela reação do velho Zé que além de velhinho era também bem magrinho, mas ligeiro como um raio.

Antes das dragas começarem o aterro onde hoje é o colégio Parobé, a gurizada fazia uma vaquinha na pracinha da Bronze, e ia até as Docas das Frutas, onde os barcos ficavam atracados no porto em frente do Pão dos Pobres, vendendo todos os tipos de frutas que vinha das chácaras pelos lados da Serraria e de Belém Novo. Comprávamos meio cento de bergamota e voltávamos pela beira do rio descascando e colocando as casacas entre os dedos, jogando-as como bumerangues ou helicópteros. Era mais brincadeira do que vontade de comê-las.
Nesta mesma época das bergamotas, as vezes levávamos rojões e íamos jogando dentro do rio para ver espalhar água. Nossa prática era mais ou menos assim: acendíamos os rojões, contávamos até cinco e atirávamos na água.
Um dia o Alfeu errou nas contas e ele explodiu em sua mão, a mão do Alfeu ficou como estas luvas cirúrgicas quando se começa a encher. Parecia um balão. Me parece que ele quebrou vários dedos, não lembro bem...

Mas a história que quero contar mesmo foi da Guerra no Rio Guaíba, entre eu e mais dois contra a turma da Rua Demetrio Ribeiro...

Aguardem...

sexta-feira, dezembro 08, 2006

O Dedo duro.



Para economizar na produção de uma edição de turismo do litoral norte Gaúcho no final da década de 70, seguiram em viagem um repórter, um fotógrafo, o cara do Comercial (Silvino Goulart) e o motorista Arlindo da Brasília da Editora.
Três dias depois da saída desta equipe, toca o telefone numa reunião de pauta de fim de tarde. Atende o editor, coloca o telefone no modo viva-voz, e diz:
- Fala, meu!
- É o Nunes, estou falando aqui de Capão da Canoa.
- Tudo bem com o trabalho de vocês?
- Esta tudo bem sim, terminaremos ainda esta semana o trabalho de campo.
- E daê? O editor já começando a se impacientar com a ladainha.
- Bem, sai daí com a incumbência e a responsabilidade de administrar as despesas de viagem...
- Sim eu sei.
- Quando saímos de Porto Alegre para Tramandaí, o Barão, o Renato e o Arlindo pediram um adiantamento...
- Adiantamento pra que?
- Fomos até o Porto, e eles compraram 50 pila de maconha e agora está acabando, eles querem comprar mais 50, aqui em Capão... O editor fica pensando preocupado e pergunta:
- Mas eles estão fazendo algum tipo de escândalo? Tem risco de vocês serem presos?
- Não, não! Eles são super reservados, só fumam dentro do carro.
- E eles estão trabalhando? Como está o trabalho deles?
- O Barão já fechou as duas capas internas, as páginas centrais, 4 cores, vários anúncios de páginas inteiras e meias páginas. Fechou também com uma construtora de Atlântida, um encarte em papel chambril 4 cores, para circular também dentro das edições normais da Editora. O fotografo já fez todas as fotos inclusive as do comercial e agora estamos seguindo para Torres onde o Barão falou que já fechou com um hoteleiro a quarta capa desta edição...
- Então!!! Dá o dinheiro pra eles, meu!
Desligando o telefone, fala para o diretor administrativo, decidido:
- Demita este dedo-duro na volta!!!

sábado, outubro 21, 2006

GUARDA DE TRÂNSITO

Em 1966 fomos morar na Avenida Prótasio Alves, 5567, no edifício Pioneiro. Confesso que foi um choque já que morávamos no centro (Alto da Bronze) e fomos para um bairro que na época era quase todo mato, dos dois lados, descendo a Prótasio passando para o outro lado da avenida Carlos Gomes, e lá não existia nada. Petrópolis era até o fim da linha do Bonde, que ficava em frente do cine Atlas, então, não sabia muito bem o bairro que morávamos: se era Petrópolis, Vila Jardim, Bom Jesus, Chácara das Pedras ou Paineira. Este último era o nome que eu mais gostava. Em frente deste edifício, os moradores mais jovens se reuniam principalmente nos fim de semana escutar a Rádio Continental, para curtir Elvis, Little Richard, Chuck Berry, Beatles, Rolling Stone, Roberto Carlos, Wanderléia, Jerry Adriani, Os Mutantes e o Renato & Seus Blue Caps, era o nosso primeiros contato com o Rock 'n Roll. Este era o ano da grande transformação planetária, a partir desta década nunca mais o mundo foi o mesmo. Ficávamos ali mostrando nossas roupas “da hora”, botinhas Calhambeque, pulseiras e anéis com os brucutus dos Fuscas, calças boca-de-sino de duas cores e camisas com as golas altíssimas que minha mãe costurava para gurizada. Colocávamos o toca-discos portátil em formato de maletinha com um grande auto-falante na tampa ou o potente rádio portátil do Dinarte Jackes, um dos “magrinhos” do grupo. Aliás, o nome da turma era a Turma dos Magrinhos. Já éramos olhados como:
- Estes cabeludos... todos maconheiros...

Um dia, encontrei perdido o apito do guarda noturno do Pioneiro. O guarda era o seu Albino, um velho e magro gauchão, ex-policial de trânsito que vivia com sua capa azul marinho de lã, cobrindo até os pés, um bigodão amarelado pelos palheiros fumados e um relho de nervo de pênis de cavalo na mão. Eu comecei a brincar com o apito como se fosse um guarda de trânsito, e, nesta mesma hora, passou um Jipe preto-e-branco (quero-quero) da Policia Civil e eu apitei para eles. Eles pararam e foi uma gargalhada geral, todo mundo riu, até quem não estava no grupo. A polícia nesta época era temida, caía sobre o Brasil neste ano nuvens escuras terríveis da Ditadura Militar. Continuamos brincando todos ali e quando menos esperávamos, eles surgiram: um veio a pé por trás e o outro chegou de Jipe com os faróis altos em nossa direção. Automaticamente joguei o apito no chão, eles chegaram com os revolveres na mão gritando e dando pontapés:
- Todo mundo com as mãos na parede, mãos na parede!!!
Enquanto um dava uma geral em todos encostados com as mãos na parede, o outro perguntava quem era o guarda de trânsito. Ninguém dizia nada. Éramos uns oito, com idades que variavam entre 13 e 16 anos. Eles falaram:
- Já que ninguém quer dizer quem estava apitando vai todo mundo preso!
Abriram a porta do camburão atrás e fomos entrando todos. Aí, os menores começaram chorar dizendo para os policiais: "Foi este aqui seu guarda, foi este aqui..." apontando pra mim. Eles ficaram putos e responderam:
- Já que não falaram quando perguntei agora vão todos em cana!
Foi a maior choradeira dos pequenos. Fomos levados presos para a famosa 8º delegacia, tida como torturadora. Sabia-se que o torturador era praticante de luta livre, o Jangada, um cara que pesava mais de 120 kg. Ele perguntou para os guardas que nós prenderam quem era o guarda de trânsito, sentado atrás de uma escrivaninha. Me empurraram para frente daquele monstro com uma cara de mau que me falou segurando uma palmatória:
- Bota este apito na boca e fica apitando até que eu bata nesta mesa para tu parar, se tu parar antes eu não vou bater na mesa, eu vou bater em ti!!! Vai, começa!!!

Magrinho... fui salvo por minha irmã, a Clara, que entrava na delegacia junto com um monte de mães e pais apavorados para nós tirarem de lá. Os guris menores choravam abraçados em seus pais... Depois de tudo explicado eles iam embora um de cada vez, a bomba sobrou pra mim que tomei o maior esculacho do Jangada, e fui o último a sair da delegacia.

domingo, setembro 03, 2006

Jesus me ouve. >>>>> 6º parte.


Encontrei Jesus, acordando numa manhã de sol de inverno, num frio de rachar do mês de agosto. Ele estava acabando de acordar. Mulheres, homens e crianças passavam apressados a caminho de suas compras no Mercado Publico, passavam por ele, ali deitado, tremendo de frio sem prestarem atenção; de quando em quando pombas rompem vôos fazendo rufarem suas asas para em seguida posarem novamente entre os pedrestes. Notei que ele estava com os pés inchados e destapados, barbudo, roupas imundas e estava deitado num banco de cimento, embaixo de uma árvore baixa nativa, enrolado num cobertor azul tipo aqueles usados para embalar móveis em mudanças. Ele olhava para todos os lados, até reconhecer onde estava.
Cheguei mais perto e comprimentei-o: “Bom dia!”.
Ele me olhou desconfiado e nada respondeu, ficou olhando para cima vendo os raios de sol passar por entre as folhas da árvore.
Perguntei: “Quer tomar um gole?” E estendi a garrafa de cachaça quase no fim. Ele sentou no banco, deu um gole e devolveu a garrafa dizendo que estava com uma puta fome, olhava e apontava para barriga para mostrar que dava para ouvir que estava roncando: ela roncou tão alto que começamos a rir, rimos até quase chorar, os dois bêbados dando risadas às nove da manhã de um dia da semana... Quem olhava não entendia!
Curiosamente, também senti muita fome e não estava a fim de beber como em dias anteriores.
Como eu tinha algum dinheiro e estava mais bem vestido que o Jesus, fui até a padaria e pedi dois pães com manteiga e uma média com leite que trouxe dentro de duas garrafinha de água-mineral. Comemos ali sentados vendo as pessoas passarem. Os pombos atraídos pelos pães vieram em revoada, ficando em nossa volta. Foi quando ele me perguntou: “Diz ai gaúcho, o que tu veio fazer aqui, veio passar férias? Perguntou, rindo ironicamente”.
Respondi que tinha voltado para o meu estado natal e que sempre fora esta minha vontade, pois tinha nascido aqui, mas nunca tinha morado. Saí com menos de dois anos e voltei com 37 anos.
Eu precisava falar para alguém que estava recaído, eu não agüentava mais beber, e novamente estava coberto com a lama do fundo do poço. Eu falei:
- Estou recaído já há 2 anos.
Ele não entendeu, ficou me olhando como se eu tivesse dito que estava com alguma doença contagiosa. Eu sou alcoólatra e não consigo ficar no primeiro gole. Ele ficou ainda mais espantado e perguntou. - Como assim, alcoólatra? Eu sorri e disse: “vou te contar, minha história, como tudo começou...”:

Quando tinha uns 17 anos, não conseguia entender como é que os meus amigos podiam beber Vodka, Conhaque, Uísque, Cerveja e Cachaça com Limão, com Underberg, com Bitter, com losna, com mastruz... urgh!
Bom era beber Grapete, Pepis-cola, Guaraná, Minuano-limão, Fanta-uva, fumar umzinho e suco de laranjas, isto sim era bom! Mas álcool... Não sei como conseguiam.
Mas, numa noite, eu estava num Parque de Diversões que havia chegado na Chácara das Pedras, com todos os meus amigos felizes da vida apostando, correndo de estande em estande: uns no estande de tiros ao alvo, tiros nos patinhos coloridos que ficavam passando continuamente e quando eram atingidos caiam para o lado, outros amigos na Roda-Gigante, no Barquinho, dirigindo os autinhos elétricos para estacioná-los na garagem e retira-los de lá, no Chapéu-Mexicano e outros no Carrossel...
E eu, numa barraquinha de jogos de argolas, aquelas, que se você conseguisse argolar o prêmio, levava na hora. Eu mirei minha última argola de três, numa bailarina de gesso, linda, dançando com os braços para cima nas pontas dos pés, joguei, errei, acertei um litro de vermute...
Abri ali mesmo e provei, senti o gosto doce do Vermute e bebi vários goles, pouco tempo depois... Foi incrível! Foi maravilhoso! Tudo se transformou para muito melhor. As luzes, à noite, a música, o céu maravilhosamente estrelado, o néon colorido da Roda-gigante, as meninas no Carrossel com os cavalinhos subindo e descendo. As pessoas além de ficarem mais altas também ficaram lindas, todas sorriam. Pareciam que quando caminhavam seus passos atingiam uns três metros cada em câmera-lenta. Também fiquei assim, me aproximava das meninas, falava qualquer coisa que as deixavam felizes, dava beijinhos em seus pescoçinhos brancos e saia flutuando, toda minha timidez desapareceu, eu declamava, cantava e dançava como se fosse um bailarino no Paraíso, as atenções de todo Parque, pareciam toda voltada pra mim, meus amigos me aplaudiam e eu era o guri mais feliz do mundo!
- Foi então, que compreendi companheiro, - como é mesmo o teu nome ?
- Jesus! Que não era pelo gosto que os meus amigos bebiam, era o “efeito”, efeito maravilhoso que eles sempre buscavam. Mais tarde foi que descobri, que o Álcool é a droga mais poderosa que existe.
Vomitei quase as tripas, naquela noite, e nunca mais consegui beber Vermute sem enjoar.
Continua.

...

domingo, agosto 20, 2006

Revolução Cubana: por Jorge Fischer Nunes


Jorge Fischer tinha quase dois metros de altura e era forte e calmo como um touro - por isso era da Policia de Choque, que ficava ali na Rua Riachuelo com a General Portinho, até se tornar subversivo, preso e torturado.
Nas aulas de tortura que os americanos sinistros vieram ministrar para o pessoal do DOI-CODI, numa espécie de “mestrado” da Policia do Exercito Brasileiro, uma das principais aulas era a aula-prática de choque.
Com medo de matar alguém acidentalmente, mandaram chamar o Fischer na prisão da Ilha das Pedras, já que ele era grande e forte, e, por isso, mais “resistente”. Ele me disse que os policiais deixaram-no nu, amarrado, deitado sobre uma mesa com braços e pernas abertos, num auditório de aula com todos os alunos torturadores sentados e concentrados, anotando cada detalhe que eles achavam mais importante. Então começou a demonstração: primeiro choque nas orelhas, depois nos mamilos e por ultimo nos testículos. Isto e muito mais ele contou em seu livro, “O Riso dos Torturados”.
Fischão, como também era conhecido pelos amigos, ria de tudo e gostava de contar causos de políticos safados, militares cagões, burgueses nojentos e revolucionários desbundados, como este, que ele me contou numa de uma de nossas “viagens”, o causo da Revolução Cubana.

Na libertação de Cuba do grande Império, os revolucionários não tinham muita experiência na lida de uma nação, já que a burguesia que detinha a mão-de-obra especializada (Industriais, comerciantes, médicos, jornalistas, cientistas, agrônomos etc.) fugiram como puderam do paredão para Miami.
No interior da ilha de Fidel, os revolucionários entraram numa fazenda de pesquisa de matrizes de animais valiosíssimos que acabaram de expropriarem.
Como tinham que assumir o controle da mesma e seguirem em frente, o capitão perguntou se alguém ali tinha conhecimento de fazenda de criação de gado. Quem mais conhecia era um sapateiro, que trabalhava com pedaços de couro, e, por isso, assumiu a administração da fazenda. Logo que assumiu, encontrou uma matriz de boi (valia bem mais do que 80 mil dólares), mastigando calmamente um pouco de palha especial, deitado sobre uma serragem de um pinheiro de cheiro perfumado, num establo com ar-condicionado, ambiente com luminação apropriada, água fresquinha e tratada, shampoo, óleos para massagem que tem um efeito estético. O boi fica com uma aparência melhor porque a massagem reduz as gorduras localizadas. Enfim, é cuidado com o maior mimo por equipe de várias pessoas.
Quando o sapateiro viu isto ficou louco da vida, deu um pontapé no boi dizendo: “Boi filha da puta! Burguês de merda! O povo passando fome, e tu aqui no bem-bom!!!”
Pegou uma faca e carneou o boi, fazendo o maior e melhor churrasco da revolução Cubana.

domingo, agosto 06, 2006

Jesus Guerreiro de Jorge. >>>> 5º parte.

- Jesus, meu guerreiro, chega de sofrer, - diz São Jorge, no sonho - agora chegou a hora de lutar de buscar o que te tiraram. Não foi fácil a tua vida até aqui. Você lutou contra forças muito maiores do que a do Marreta e seus soldados. Roubaram-te teus diretos e os do Marreta, ele é tão vítima quanto tu. Deus fez tudo isto que aqui está: o sol, a lua, as árvores, as montanhas, a chuva, os pássaros e o mar. Só depois de pronto este cenário, é que ele te botou aqui, para desfrutar de todas estas belezas. Só bem mais tarde é que as coisas evoluíram de uma forma errada, trocaram tudo, com alguns sinistros querendo mais do que já tinham para sua própria sobrevivência, e para ter mais precisavam tirar de ti e de outros. Mas tudo isto que ai está é teu!
- Mas o que pode ser meu, Jorge, se não tenho nada? O barraco que moro, que construí trazendo tabua por tabua, telha por telha lá de baixo até aqui em cima só contando com ajuda de minha mulher, não tem mais nada lá dentro, nem comida. Meus filhos já não querem mais descer o morro para irem à escola, quando descem são hostilizados. As meninas que quando pequenas eram amigas de minha filha na escola, agora debocham das suas roupas velhas e fora de moda, com os tênis furados e sem marca. As meninas riem dela e ela chora. Eu sei que ela chora Jorge, eu já vi só que não perguntei nada, sofri muito, mas não disse nada, não sabia o que dizer, eu não entendo por que existe tanta diferença, alguns poucos com muito e outros com nada! Jorge, já vi homem chorar, impotente, vendo a mulher e filhos com fome. Nestas horas, o neguinho quer ter um três oitão para buscar na marra comida para seus filhos, pois se pedir, ninguém te dá nada, só te dão esculacho. Primeiro, Jorge, por vergonha, eles pediam trabalho, qualquer coisa por uns trocados. Sabe Jorge, os bacanas batem a porta na tua cara, não te deixam nem mexer no seus lixos, para ver se encontra um pãozinho. Eles chamam os cachorros, dizem que vão chamar a policia... Como se uma pessoa com muita fome tivesse força para roubar alguma coisa. Mas não é medo o que elas sentem, elas têm nojo mesmo - até com revolver elas ameaçam. Nestas horas, o neguinho vai buscar na mão grande, e a maioria ainda não o fez porque não tem armas.
Jesus se vê todo orgulhoso no sonho, agora vestido com a mesma roupa de Jorge, e, quando olha para o seu lado direito, vê o Marreta com o maior sorrisão com cara do Saddam, ele Turcão, Santamaría, Chupeta e Boca Murcha debochadamente sorrindo, vestido com as armaduras, capas vermelhas e lanças, iguais a de Jorge.
Jesus dá um pulo, saindo do pesadelo. Acaba de acordar assustado e ofegante, tenta botar os óculos quebrados a o meio e percebe a extensão do murro do Santamaría. Seu olho esquerdo lateja, quase fechado pelo hematoma, seu nariz doi muito, ele acha que esta quebrado de tanta dor. Jesus se dá conta que tem de voltar enxergar, ele tem miopia de 3 graus e meio. Ele lembra quando enxergou o mundo pela primeira vez... Estava em alto mar numa baleeira fazendo pesca de arrasto, ele tinha 20 anos, lembra bem quando o Mestre tirou seus óculos para dar uma coçadinha nos cantos dos olhos e Jesus pediu para dar uma olhadinha. Ele não respondeu só fez um gesto de “Vai em frente...” Na hora que colocou os óculos... O mundo se mostrou, ele viu o horizonte e as varias tonalidades de cor que o mar mostrava, viu tudo com uma clareza que ele não sabia que era possível, as gaivotas voando perfeitas... e neste exato momento passava por eles, bem perto mesmo, um enorme navio casco-branco onde ele pode enxergar claramente (quando viu chorou), e nunca mais esqueceu o nome do navio: “Sant Ana”...
Continua...

domingo, julho 30, 2006

Negro Argentino.





















Estive em São Borja no inicio de 1985 e depois em 1987. Na primeira vez, levei dois exilados do grupo Argentino Los Montoneros (um editor e um médico patologista) para atravessarem a fronteira por ali. A cidade de São Borja está localizada na região da campanha do Rio Grande do Sul. Esse município é distinto devido à existência de grandes estâncias onde há a presença do gaúcho típico. Nas rodas de chimarrão, nota-se uma demonstração da famosa hospitalidade gaúcha, onde quase sempre, são contados os “causos” de guerra e de valentia. Fora deste ambiente de galpão, são silenciosos e desconfiados, como é a característica de todo homem fronteiriço.

Dois dos maiores pecuaristas e latifundiários do município são da família Goulart e Vargas, coincidentemente os dois foram presidentes do Brasil. Para percorrer os limites dentro de suas terras, a cavalo ou de carro, levam-se dias. Só sobrevoando por vários minutos sobre suas fazendas que atravessam até três municípios: Uruguaiana, São Borja e São Luis Gonzaga até o Rio Ijui. Do outro lado rio já é de outros latifundiários capitalistas, donos dos cartórios, juizes e como sempre, de deputados e senadores. O Pampa é realmente maravilhoso. É mais ou menos como quando se olha o horizonte no mar, a diferença é que lá é só campo até perder de vista, onde a qualidade das carnes de gado é muito famosa em quase todo mundo: O gado não faz esforço nenhum para subir ou descer, é tudo plano, portanto, suas carnes são macias e sem músculos.

Na fronteira com Argentina, nesta região, não há negros ou até tem uns poucos, mas na Argentina, não existem mais nenhum - eles foram impiedosamente exterminados, os que moram hoje lá, não nasceram no país. Quando começavam as guerras por disputas de terras entre os latifundiários brasileiros e argentinos, eles armavam um circo como se fosse uma guerra de soberania entre os dois países. Formava contingentes de guerra entre a peãozada das fronteiras, louca por uma peleja, esportezinho de guerra para descarregar as baterias, e sempre existia a possibilidade do estupro das gurias puro-sangue argentinas, com a pele clara, cabelos loiros, ancas de potrancas, peitos firmes e mamilos rosados que cruzassem seus caminhos. Isto é o que mais os motivavam, já que eles estavam cansados de só “barranquearem” as éguas e ovelhas, tesãozinhas da fazenda. E, como sempre, os negros que iam à frente das batalhas pelos dois lados, com ordem de não voltarem sem ganharem à guerra. Os feridos ou estropiados que voltavam não tinha perdão, eram passados na “adaga”, não tinham tempo a perder com estes “negros trastes à toa”. Só quando chegava o Exercito Brasileiro, fortemente armado e treinado, é que a gurizada paisana entrava em campo, animada e motivada com a possibilidade sexual.

Outra característica, coisa que me chamou a atenção, foi a profissão de “Patiero”. Era normal até a década 60, eles terem do lado de fora da casa, no pátio, homens fazendo segurança, cuidando das casas como cachorros. Depois dessa década é que eles foram trocados, jogados literalmente para o outro lado da cerca e não puderam voltar nem para cobrarem seus direitos trabalhistas (eles nem sabiam que tinham. E quem sabia, ficava quietinho). E nem se quisessem voltar poderiam, afinal, os guaipecas e pastores alemães por quem foram trocados, não os deixavam se aproximarem. Quando pediam umas sesmarias de terra, um lotezinho para plantarem meia dúzia de aipim, umas folhas de alfaces, milho e feijão, em troca dos anos de guerras e trabalho... eram literalmente corrido da região, com fama de comunistas safados, marcados no lombo.

Buena tchê, contei tudo isto, para chegar ao "causo" principal:

Eu ficava hospedado no Hotel Charrua, que nesta época era do Grupo Ipiranga, fica em frente da praça central. Um dia, antes de vir embora, quis comprar umas lembranças da cidade e fui mais uma vez até a banca de revistas que fica em frente do hotel, no meio da praça, onde eles vendiam entre outras coisas bombas de chimarrão, cuias, facas imitando prata, chaveiros e postais. Fiquei olhando os postais das atrações turísticas, as sepulturas do Getulio Vargas e do Jango Goulart, o cemitério Paraguaio e uma outra, do tumulo da Maria do Carmo, adorada como santa. Eram feios demais como lembrança. Perguntei para o dono da banca se ele tinha alguma sugestão. Ele me falou que tinha os livros 2 e 3 da série “Rapas de Tacho” do escritor são-borjense Apparicio Silva Rillo. Eu disse a ele que conhecia o Apparicio e perguntei se ele estava na cidade, mas ele não sabia. Comecei a folhear o numero 3 e vi que tinha uma dedicatória do autor, que diz: “Causos de São Borja e do Rio Grande, com abraço do autor, Rillo” e a data de 15.11.85 (data da primeira eleição direta, num município considerado área de segurança nacional). Perguntei a ele quanto custava os livros (imaginando que este fosse custar uma fortuna) e ele me disse: - Este aí, que ele estragou escrevendo nele é 15, o outro que está novo é 25 "pila".
Comprei os dois.
Depois, descobri que o Rillo mantinha um escritório junto de uma empresa de contabilidade, no centro de São Borja. Contei a ele o acontecido e demos boas risadas para mais um causo, onde agora, o autor fazia parte.


Autor:
Eloy Figueiredo

domingo, julho 23, 2006

Jesus encontra Jorge. >>>> 4º parte.





EU QUERO MINHA GRANA!
Jesus fica piscando como quem quer acordar e tenta buscar alguma lembrança, mas só tem flashes do dia anterior. Ele se vê como num filme mudo: o boteco do Português, Santamaría fazendo uma ameaça... mas não entende que ele diz. Vê também o Português o olhando sério, o Turcão , Chupeta tomando cachaça com caras de mortos como querendo ouvir o que ele tinha a dizer. A expressão dos capangas lhe fez lembrar sua mãe morta caída no chão, toda ensangüentada.

Ele tinha 5 anos quando seu pai deu mais de 10 facadas nela, mas Jesus não lembra muito bem quando aconteceu à tragédia. Ele foi acordado com gritos de seu pai procurando o trago de cachaça.
- Cadê minha cachaça, mulher? Tu tomou toda a pinga, filha da puta? Eu tenho certeza que quando fui dormir deixei ela aqui atrás da cama! Sempre faço isto! Já procurei por tudo e não encontrei!... Olha só o jeito que estou, filha da puta!!!”
- Eu não tomei nada, sua coisa ruim! Desmaiei antes de tu! Tu que tomou toda e agora não lembra!
O pai fica andando desesperadamente dentro do barraco, impaciente olhando por todos os lados.
- Tu acha que sou pirado pra beber toda pinga e não deixar nada pra manhã, sua merda! A garrafa ta aqui vazia, alguém tomou esta merda, e fui tu sua cadela velha... Eu quero minha cachaça agora!
Pega uma faca...
- Já procurei em tudo quanto foi canto lá fora, revirei o lixo, olhei dentro do carrinho, embaixo dos papelões e não encontrei nada, porra! Eu quero minha cachaça agora ou vou te quebrar toda de porrada! Sua fedorenta, porca do caralho!
– Vem se tu é homem, seu boca podre filho de uma puta, eu acabo contigo.
Ainda procurando a bebida e ignorando a mulher, ele dá um pontapé nos papelões que serviam de cama para Jesus que continuava fingindo dormir. Os papelões voam e Jesus acaba se chocando contra a parede. Aí sim ele começou chorar. Seu pai ficou ainda mais raivoso.
- Manda este merda de guri calar a boca! Vai ver foi este merda de guri quem bebeu a cachaça! Cheira a boca dele! Ele come e bebe tudo que encontra pela frente! - E partiu com a faca pra cima de Jesus. Quando sua mãe atravessou o caminho para protegê-lo, e recebeu a primeira estocada. Foram 18 ao todo: pelo peito, braços, pescoço e rosto. Jesus ficou quieto sem dar um pio embaixo de um monte de caixas de papelões desmontadas. Seu pai fugiu desesperado para tomar um trago, levando o carrinho e a faca.

A maloca do Jesus era feita de papelões, plástico e restos de madeira de obras com um bico de luz puxado de um gato. Com lixo, cachorros e ratos dividindo o mesmo espaço e comida. Quase sempre Jesus passava até oito horas dentro do carrinho de catar papeis e papelão. Lembra que as vezes era bem divertido, quando seus pais enchiam a cara e ficavam felizes. Eles empurravam o carrinho imitando o som de automóveis, e ficavam correndo entre carros, desviando de outros a toda velocidade e às gargalhadas. Jesus ficava dentro, em pé, tomando toda briza pela frente.

O nome Jesus lhe foi dado pelo policial que o encontrou naquela sujeira. Quando o policial entrou na maloca, ele pensou: “como alguém poderia morar nessa sujeira toda!... Jesus!” Exclamou ao ver o corpo da indigente. E Jesus saiu todo sujo, cabeludo e com sarna por quase todo corpo, debaixo de uma caixa de madeira. O policial se assustou pensando que fosse um cachorro. Quando chegaram à delegacia, o policial relatou que não foi encontrado nenhum documento de identidade, mas acha que o nome do guri é Jesus. Jesus da Silva.

Ele chegou no Abrigo de Menores, depois de passar por delegacias e outras formalidades. As assistentes sociais o levaram sem falar nada. Lembra que quando chegou lá, lhe rasparam a cabeça, deram um banho com sabonete com um cheiro que ele nunca tinha ainda sentido (produto desconhecido por ele), toalha limpa e pela primeira vez escovou os dentes, já quase todos cariados. Ganhou um par de sandálias de couro, bermuda marrom e uma camiseta pólo bege. Tomou uma xícara (linda) de café com leite, pão, manteiga e mel: esta foi, até hoje, a refeição que mais marcou a sua vida. Depois, deitou numa cama com lençóis limpinhos e ficou bem quietinho até dormir.

Jesus é cortado da viagem com um violento soco na cara que o faz cair. Sente de novo a realidade em todo o corpo: seu nariz e o olho esquerdo crescendo como estivesse adormecido, igual como quando se toma anestesia no dentista. Seu óculo ainda fica em seu pescoço seguro pela cordinha, agora quebrado no meio. O sangue do nariz e do supercílio escorre pelo seu rosto e o Santamaría sinistro, destravando uma pistola e mirando na cara de Jesus.

- Eu pago Santa! Eu pago! Eu vim te pagar juro! Olha o que vim te trazer...
Pega o saco de aniagem e tira de dentro a faca peixeira Bowie, uma faca bem antiga com cabo de dente de cachalote um tipo raro de marfim, toda de aço com uma ponta e fio incrível.
- Esta faca vale mais que 20 garrafas de cachaça. Eu ganhei de um pescador inglês.
Santamaría rápido tira a peixeira da mão de Jesus e, percebendo o grande negocio, diz:
- Ta legal, sogrão. Ta pago o que tu me devias. Agora vaza, vai, vaza daqui.

Jesus não sente humilhação pelo que aconteu, afinal “Eu mereci, eu tava devendo e tudo que esta acontecendo é por culpa daquele filho da puta do Marreta. Este sim é culpado por tudo, este sim arrebentou minha vida, meu trabalho, minha família, tudo.” Toma um gole forte de álcool com café e pensa como vai fazer agora que perdeu uma de suas melhores armas. Como ele faria agora que só resta um facão enferrujado e um pedaço de pau contra o exercito armado com metralhadoras AR15, pistolas Colt, até lançador de granadas?

Jesus pensa em começar a formar um exercito para combater o do Marreta.
Senta no degrau da capelinha com vista para cidade lá embaixo, e sente saudade do seu trabalho no Mercado Publico. Nisto se aproxima dele um vira-lata. Ele pega uma das lentes do óculo quebrado e observa o cachorrinho de uns 6 meses, branco com machas preta e marrom, tão magro que mostra todas as costelas. Vem com o rabo balançando com o corpo meio encolhido de lado cheio de medo para junto de Jesus. Jesus sorri e diz:
- Chegou meu primeiro guerreiro - diz acariciando a cabeça do cachorrinho - que será treinado por mim até que um dia esteja preparado para atacar a jugular do meu inimigo!

Jesus dorme ali e sonha que vê, uma luz incrivelmente brilhante dentro da capelinha, e vê quando Jorge salta com seu cavalo branco de dentro da grutinha. Desmonta elegantemente vestido com sua capa vermelha e sua armadura de cor prata e uma lança comprida na mão esquerda. Jesus em referencia põe um joelho no chão e inclina a cabeça ...

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domingo, julho 16, 2006

Guri do bonde.



Uma das brincadeiras urbanas no ano de 1963, era pegar carona nos bondes. Enquanto o motorneiro e o cobrador ficavam na frente conversando, nós subíamos na porta de trás. Nossa prática era tão boa que saltávamos do bonde Duque em qualquer velocidade. Mas com o bonde Gasômetro não era bem assim, como pude constatar na reta da Rua Washington Luis até a ACM.
Eu só conhecia dois dos que já tinham conseguido tamanha façanha: o Alfeu e o Maninho, e por isto eram respeitados e admirados por todos os guris da Praça Alto da Bronze. Eles também se sentiam superiores por isto. Só superior a eles era o “Guri do Bonde”, que roubou um bonde da linha Petrópolis, numa tarde de domingo de ferias de verão.

Antes de entrar na matine do cine Ritz, o Guri observou que o motorneiro e o cobrador foram tomar uma cerveja no bar na frente do fim da linha, que ficava exatamente na frente do cinema, esperando a hora de voltar para o centro. Subiram alguns passageiros: casais com crianças pequenas que iam esperar sentados, no interior do bonde, para passear na Redenção ou no centro.
Quando ele viu aquilo, o bonde abandonado e chamando por ele, não resistiu. Subiu e moveu a alavanca como havia aprendido olhando o motorneiro dirigir. Quanto mais ele movia a alavanca para frente, o bonde corria mais descendo a Avenida Protásio Alves à toda velocidade, com funcionários da CARRIS correndo, gritando e fazendo gestos desesperados com seus blazers na mão como se fossem bandeiras desfraldadas. Só conseguiram pará-lo na Osvaldo Aranha, no Bom Fim, depois que o cobrador e motorneiro se apropriaram de um automóvel que parou para saber do ocorrido. - Em nome da lei, siga aquele bonde! – disseram eles. Ele foi preso e tornou-se noticia dos jornais, no qual lia-se na manchete “Guri rouba bonde”.

Era outono e já tinha anoitecido. A lua cheia deixava o rio Guaíba cor de prata. A usina estava a todo vapor soltando sua fumaça da cor de nuvens carregadas. As luzes de sua chaminé já estavam acesas como uma gravata colorida, e, ao lado, via-se o velho Cadeião do Gasômetro, destruído como um cenário de guerra. Encostei o ouvido no poste de ferro gelado e fiquei escutando o bonde, que já vinha na altura do quartel da Policia do Exercito, na Rua da Praia. Meu coração começou bater mais forte. Eu não tinha planejado nada – simplesmente tinha me dado na veneta. Desci da Rua Vasco Alves pela Duque de Caxias, apressado e determinado de que tinha que ser nesta noite. A lua também fazia brilhar os velhos paralelepípedos polidos pelo tempo como um espelho irregular e o par de trilhos tais quais duas serpentes de aço multicoloridas pelas luzes. Vi quando ele vinha dobrando da Rua da Praia entrando na Washington Luis. Era um “bonde gaiola”. Estremeci, mas estava determinado. Como sempre, o motorneiro e o cobrador vinham conversando na frente, em pé, com seus uniformes cor de caqui, gravatas pretas e de casquete na cabeça, tipo militar.

Nesse dia, o cobrador e o motorneiro fingiram que não tinham me visto subir na parte de trás do bonde gaiola, que alem de menor e mais rápido, sacudia de todo o jeito, tanto para cima e para baixo como para os lados. Estava curtindo a brincadeira, agarrado com uma mão no estribo e um pé no inicio do degrau, esticado com todo corpo para fora em forma de “X”, saboreando vento contra. Foi quando, nesta reta, eles imprimiram toda velocidade que o bonde suportava. Acho que era de 60 km. Eu ainda não tinha pulado com tal velocidade. De repente, o cobrador do bonde veio caminhando pelo corredor iluminado com aquela cara de cavalo feliz, suando todo dentro daquela roupa quente de linho, sorrindo e mostrando um baita de um dentão de ouro.
- Te peguei piá.

Eu pulei. Durante o pulo eu viajei, me senti voando: a adrenalina foi lá em cima com todo aquele vento frio contra meu corpo. Pensei por um momento que poderia planar como uma pandorga. Lembrei-me de minha mãe dizendo: “Eloy, sai deste vento, sai senão ele vai te carregar, guri...” Eu acreditava. Mas a viagem foi secamente cortada quando a parte de trás do bonde bateu em mim e me fez desequilibrar. Bati contra os paralelepípedos irregulares daquela rua. Rolei até bater no cordão da calçada, de lado. O bonde parou e dele saíram correndo em minha direção o cobrador, o motorneiro e alguns passageiros, pensando que eu tivesse morrido no salto. Mas me recuperando da queda e vendo que eles vinham em minha direção, sai correndo mancando em direção à General Alto, sangrando pelo nariz com um galo na cabeça e todo dolorido da queda, mas não quebrei osso nenhum. E ainda perdi um pé de meu Conga.

Depois disso, todas as vezes que eu tinha que pegar o bonde com minha mãe, eu fingia não conhecer o cobrador e ele fingia não me conhecer, mas via que ele ficava me olhando com a boca meio aberta mostrando seu dente de ouro, não acreditando que eu havia sobrevivido àquela queda.

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